(24/10/20)
Podemos estar cansados, aflitos, indignados, armados de sarcasmo, desconfiados até a raiz dos cabelos, amortecidos. Sim, até amortecidos, sofrendo da recém-chamada síndrome de resignação. Mas entediados? Haverá alguém que possa estar entediado? Se cada dia é um atentado à normalidade, as grandes fortunas cada vez maiores e nós de novo no mapa da fome, populações de andarilhos gritando e se aliviando pelas ruas, pilhas e pilhas de árvores serradas como um amontoado de corpos de um massacre.
Parece que nunca antes estiveram tão próximos e palpáveis os poemas mais sombrios de Al Berto, Ingeborg Bachmann, Georg Trakl. A lua de sangue logo ali, basta sair à janela. Céus de metal, pragas infernais. Pássaros de estanho, crisálidas de delírio, feridas abertas e nenhum perdão. Colheitas em vão, notícias sem prazer. O tempo pestífero. O mundo feérico. Ossos chamuscados.
Para este mês de outubro, a Nasa noticia uma chuva de meteoros e emite o alerta de aproximação “potencialmente perigosa” de um asteroide gigante, que entrará na órbita da Terra em novembro. E como fica a crônica, que presumimos tratar de coisas chãs, se até os jornais já se enamoraram do hediondo e é bem debaixo da nossa janela que o andarilho grita como um profeta de verdades insuportáveis?
A crônica toca nessas coisas tremendas, fala de luas de sangue e trevas, florestas de ossos e cinzas, e segue sendo uma obra do cotidiano nosso, minúsculo, de seres minúsculos, em certas cidades, de certos países, em continentes de uma afinal também minúscula aldeia na vista aérea do astronauta. A crônica sobe com o astronauta, atravessa a atmosfera, é até capaz de dotar de afeto e leveza nossa condição de formigas cósmicas. Depois reingressa na atmosfera, submerge na fumaça, e nos deixa aqui, de volta ao absurdo, de volta ao hediondo, cansados, aflitos, amortecidos. Nunca exatamente entediados.