No dia 23 de agosto deste ano, morreu uma pessoa muito importante para mim. Ainda que eu tenha me encontrado com ela quase toda semana durante seis anos, nĂŁo sabia que ela vinha de uma famĂlia com predisposição ao câncer, que já tinha vencido a doença duas vezes e que, na sua Ăşltima incidĂŞncia, nĂŁo teve chance de fazer nada. O tumor levou-a quinze dias depois de ser diagnosticado no estĂ´mago. Essa pessoa, como o tĂtulo do texto nĂŁo se constrange em apontar, foi minha terapeuta.
Não sou mulher de um terapeuta só. Nos meus quarenta e cinco anos de vida, já deitei em quase dez divãs, já me encantei com diversas linhas e só não fiz uma suruba entre lacanianos, freudianos e junguianos porque isso não é lá muito recomendado por eles. Mas entre tantos e tantas, a Sandra foi a mais importante para mim.
Quando bati na sua porta, aos trinta e poucos anos, eu nĂŁo era escritora, nem roteirista, nem mĂŁe. Eu era uma mulher insatisfeita no emprego de redatora, querendo muito ser escritora e digitando bastante para isso, mas com uma dificuldade intrigante em acabar os contos e o romance que entĂŁo escrevia. NĂŁo sei se chegamos a concluir de onde vinha essa minha dificuldade. Sandra era psicanalista e psicanalistas nĂŁo sĂŁo muito afeitos a respostas monolĂticas. Mas eu tenho lá minhas desconfianças. Fui criada numa colĂ´nia de descendentes de italianos, uma comunidade bastante machista e conservadora. Como ouvi certa vez de um parente prĂłximo: mulheres nĂŁo devem ler livros, devem ler revistas. Ler nĂŁo, folhear. Se uma mulher nĂŁo deve nem ler um livro, imagine escrever. Que disparate. E mesmo assim eu escrevia desde que me alfabetizei. Mas mostrar meus textos para alguĂ©m era outra histĂłria. Terminá-los era outra histĂłria. Porque em algum momento eu parava para ler o que estava no papel e pensava que tudo aquilo era uma bobagem, um aviĂŁo de sulfite que sĂł podia pleitear pouso em um destino: o lixo.
E entĂŁo Sandra. NĂŁo sei bem o que eu e ela fizemos naquela sala da rua JerĂ´nimo da Veiga mas comecei a terminar meus contos. Publiquei A teta racional e, nesse dia, senti que passei a existir por inteiro. O que nĂŁo me livrava dos outros problemas de existir, como um relacionamento abusivo que eu estava vivendo, dentro da minha prĂłpria casa. Ao saber que eu me trancava no banheiro para nĂŁo ser agredida e que, apesar de todos os meus pedidos, esse homem nĂŁo arrumava as malas e ia embora, Sandra quebrou o protocolo: se a sua famĂlia nĂŁo tirar ele de lá hoje, me avisa que eu vou.
Nem sĂł de dramas superlativos vive uma terapia. Lá tambĂ©m consegui assumir e firmar, sem mais constrangimento, o meu hábito de usar sapatos atĂ© a sola furar, nĂŁo por falta de dinheiro ou por desleixo, mas porque quando gosto de alguma coisa nĂŁo consigo largar, configurando-me uma personagem de gibi, sempre com o mesmo visual e, naturalmente, cada vez mais puĂdo. O que, na Ă©poca, concretizava-se num par de botas estilo cowboy. O olho da sola encarava a Sandra durante a consulta e rĂamos disso, num exercĂcio nĂŁo-verbal de aceitação das minhas esquisitices.
Quando tornei-me mãe e entrei num quadro depressivo, ela pediu que eu levasse a Eva à sessão. Apareci com minha filha no colo. Amamentei enquanto conversávamos de trabalho. Nunca entendi direito por que ela pediu que fôssemos juntas. Acho que queria observar a nossa interação, ver se estávamos bem enquanto dupla.
Lá pelo quinto ano de terapia, achei que o valor das consultas estava pesando demais e resolvi parar. Uns meses depois voltei. Uns meses depois parei de novo. Um ano depois… Retornei. Nessa Ă©poca estava acabando meu segundo livro, o romance Tudo pode ser roubado. Durante uma sessĂŁo, sei lá por quĂŞ, resolvi contar o final do livro. Disse que a narradora ia atĂ© o brechĂł que era de sua amiga e pegava o que restou, a manequim de vitrine que elas apelidaram de Sandra. Minha terapeuta me interrompeu: como Ă© o nome da manequim? Sandra, repeti. E sĂł nessa hora me dei conta que havia batizado a mulher de plástico, relevante na narrativa, com o nome dela. Sandra pediu que eu prosseguisse, contando o que acontecia na histĂłria. Falei que a narradora botava o tronco da manequim debaixo do braço e ia embora do brechĂł. Começava a subir a Teodoro Sampaio carregando a Sandra. Mas começava a chover. O pedaço de plástico pesava. E quanto mais a narradora queria se livrar da manequim, mais aferrava-se a ela. SilĂŞncio na sala. Depois de um tempo, Sandra alisou a calça e disse algo vago como: pois entĂŁo. SabĂamos o que aquilo queria dizer, já vĂnhamos conversando a respeito. Estava na hora de eu me livrar de vez dela.
Em qualquer outra relação, se livrar teria um tom pejorativo. Não sei se usei esse termo, mas tenho certeza de que Sandra adoraria ouvir: me livrei de você. E me livrei tanto que passei a bater asas como feminista, publiquei meu segundo e terceiro livro, gastei mais alguns pares de botas até a sola, me separei e hoje vivo um casamento bonito. Quando publiquei Tudo pode ser roubado, deixei um exemplar com uma dedicatória cheia de gratidão na portaria do consultório. Não tenho certeza porque minha memória é vacilante, mas acho que foi o último contato que tivemos.