Tudo o que sei hoje sobre essas bonecas reborn é contra a minha vontade. Gostaria de deixar claro que fui forçada a conhecer. Alguém, por favor, aciona o Tribunal de Haia. Isso é tortura.
A ideia de uma boneca “viva” não é nova. Temos Pinóquio, Chucky, Annabelle etc. Não por acaso, a maioria é personagem de terror. A diferença é que, agora, hordas de acéfalos se relacionam com as bonecas em um delírio absolutamente doentio. Tem casal brigando pela custódia de uma boneca. Tem encontro de “mães reborn”. Gente. É uma boneca. Vamos parar com esse absurdo.
Além da questão completamente surreal e aterrorizante dessas abominações da indústria, tem outro ponto importante, o da capacidade simbólica. Se a pessoa prefere se relacionar com uma boneca afetivamente se ela for hiper-realista, isso significa que sua capacidade simbólica ou já morreu ou está agonizando.
Não vou nem entrar na questão de a boneca normalmente ser da mesma etnia de sua proprietária. Sim, proprietária, é um objeto. Mãe é outra coisa. Aceito até mãe de pet. Aceito até mãe de planta. São seres vivos. Aquilo ali é uma bo-ne-ca.
Se considerarmos apenas a partir da arte rupestre, já lá se vão algo como 40 mil anos de representações simbólicas. E esse começo é meio controverso. Tem bastante gente graúda que acha que foi bem antes disso.
A boneca reborn joga, no mínimo, 40 mil anos de história no lixo. Que horror. Que desperdício.
E aí vejo mães pagando quantias astronômicas por uma boneca dessas só porque a sua pequena cria quer uma. Quer porque viu em algum lugar. Porque outra criança tem. Porque uma propaganda ou rede social falou para ela que ela precisa de uma. Sabe, às vezes, é preciso dizer não. Lidar com a frustação é uma parte importante do crescimento.
Essa é a mesma geração que aceita a resposta da inteligência artificial como se fosse de um oráculo. É a mesma geração que aceita discursos fundamentalistas — tanto políticos quanto religiosos — como se fossem uma verdade absoluta. É a geração com uma das maiores, se não a maior, incidência de transtornos de ansiedade da história. É uma geração viciada em bets. Meu deus, que pena. É um lento e lucrativo suicídio coletivo.
Precisamos voltar a sonhar, a fazer-de-conta e imaginar. E, para isso, precisamos ler narrativas complexas, assistir longas inteiros sem interromper, brincar com bonecas de pano, transformar caixotes em espaçonaves e vassouras em cavalos. Não por saudosismo. Odeio saudosismo. Precisamos disso para sermos capazes de criar.
O que é vendido como perfeito nada mais é do que uma ferramenta de controle. A criança passa a esperar que o mundo seja perfeito. Sabe onde tem um mundo perfeito? No shopping. Ah, o perfeitinhoX aqui não satisfaz mais? Compre agora o perfeitinhoXI, o mais novo modelo, agora à prova d’água! E assim, em uma longa ladeira formada por necessidades falsas, rolamos humanidade abaixo.
Em breve teremos máquinas fazendo poesia enquanto nós fazemos o trabalho braçal.
Não, pera.