Mudanças

Mais uma vez o recomeço em outro apartamento, deixando para trás um lugar repleto de histórias afetivas
Ilustração: Eduardo Mussi
07/12/2023

Semana de mudança é horrível mas serve para mudar também por dentro. Junto com caixas, os muitos livros e os poucos móveis vão também pertencimentos, os territórios, os afetos bons e os ruins.

Se aquela história de que não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças, eu vou viver para sempre. E se, nesse momento, você pensou em Mumm-Rá, o ser eterno, você é tão velho e idiota quanto eu.

Fiz o que pude para organizar, catalogar e etiquetar tudo antes, na vã esperança de ser mais fácil na hora de remontar tudo do outro lado, depois de passar pelo portal mágico que é a empresa de mudança que enfia tudo em caminhão e entrega em outro endereço. Essas pessoas sobem por sei lá trocentos lances de escada com um piano nas costas (piano metafórico no meu caso em específico, mas com um alto potencial de literalidade). Eu mal consigo levantar a jardineira do coentro.

Também não consigo abrir o pote de azeitonas, mas vou deixar isso para outro momento. É um setor exclusivo da bile. Tem até CEP próprio.

Tem algumas profissões que me impressionam muito. O instalador de tela de proteção em janelas, por exemplo. O cidadão se pendura para fora da janela com uma furadeira em uma mão, segurando mal e porcamente no batente da janela com a outra, no seiláquegésimo andar e nem pisca. Eu chego perto de uma coisa dessas e já sinto o infarto chegar.

Na saudosa época do Orkut, eu fazia parte de uma comunidade intitulada “Eu odeio o meu pedreiro”. A melhor rede social de todos os tempos morreu, mas o sentimento permanece. Se eu ou você trabalhássemos tão porcamente quanto, estaríamos sem trabalho para todo o sempre.

Sem falar do machismo, mas vou deixar isso para outro momento. É um setor exclusivo da bile. Tem até CEP próprio.

Enfim, quase chegando aos 53 anos, terei a tão sonhada portaria 24 horas. Para quem dá aula presencialmente até 22h50, isso não é um luxo.

Será o segundo lugar na minha vida com uma portaria de verdade. O primeiro foi onde eu morava quando meu filho nasceu. Nessa época eu trabalhava em casa e não valorizei como deveria. Depois e antes, uma sequência de prédios precários, estranhos, em lugares esquisitos, com vizinhos kafkianos.

Os vizinhos barulhentos não vão deixar saudades. A mulher que grita o dia inteiro com a mãe, por exemplo. É um setor exclusivo da bile. Tem até CEP próprio.

Para facilitar, coloquei etiquetas pela casa toda com “vai” ou “não vai”. Deixo para trás, além de memórias, alguns móveis.

Nina Simone está preocupadíssima porque ainda não ganhou nenhuma etiqueta de “vai”. Para manifestar o que pensa a respeito da bagunça em sua casa, destruiu mais um vaso. Que audácia, uma planta ganha etiqueta e ela ainda não. Uma planta. Planta. Nem andar sabe. Fica lá, presa num potinho. Coisa ridícula.

Nina ainda não sabe, mas vamos morar do lado de um lugar que atende pelo nome de “o parque dos cachorros”. Espero que ela faça amigos com mais competência e agilidade do que eu.

Sair desse apartamento não será fácil. São muitas camadas de histórias importantes vividas ali. Minhas histórias e histórias de gente absolutamente fundamental na minha vida.

Como já fiz antes e, imagino, farei outras vezes, pretendo apenas fechar a porta e ir. Pegar fôlego para a travessia e ir indo, indo, indo, para quando tiver ido já estar longe. Fora do alcance da vista.

E aí respirar.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho