Chego em Manaus, táxi para o hotel. No caminho quase somos atropelados por um urubu. Manaus não é para amadores. O taxista, entusiasmado, começa a me contar sua história de vida. Nasceu ali perto, numa cidadezinha “mais abaixo”. Não descobri o que é em cima ou embaixo. Norte, sul? Nascente e foz do rio? Montanha? Continua contando que foi criado em Manaus.
Trânsito. Indignada, pergunto. Acidente de moto. Mais um, o motorista me diz. Fico em silêncio. Ele então emenda com uma longa lista das mortes horrorosas das últimas semanas. Aproveita para me contar que apareceu um jacaré na praia, uns dias antes. Que nada aconteceu, mas que eu devo ter cuidado se quiser ir à praia. Não quis.
O taxista tem 61 anos e nunca saiu da Amazônia. De onde, naturalmente, ele conclui que não é amazonense porque seus pais são cearenses. Cachorro com cachorro dá o quê? Ele pergunta para uma passageira muito confusa. Gato com gato dá gato, né? Se a gata tem filhotes no fogão nasce biscoito ou gato? E eu em silêncio, perplexa. Logo, meu pai e minha mãe são cearenses, então eu sou cearense. E, satisfeito com o sucesso incontestável do seu argumento, encerra a conversa e segue em silêncio até a porta do hotel. Bem-vinda a Manaus.
As reflexões sobre pertencimento ou não-pertencimento me são importantes. Me debrucei sobre elas em pelo menos metade das minhas pesquisas acadêmicas e artísticas.
Estou aqui no meio da selva para apresentar um trabalho em geocrítica, curiosamente. Enquanto falo, no congresso, o taxista não sai da minha cabeça.
Em uma palestra, um cidadão começa dizendo “o centro é aqui, São Paulo é que é longe”. Entendo — e defendo — todo o questionamento sobre o que é norma, o que é periférico. Joaquín Torres García é meu pastor e nada me faltará. Entretanto, o urubu gigante dinossáurico que quase bateu no carro e o jacaré banhista ainda estão comigo.
De noite, um concerto no Teatro Amazonas com a Filarmônica.
Do lado de fora do teatro, na pracinha, o circo armado. É época de boi. Um telão transmitirá ao vivo de Parintins. A torcida vermelha é a do boi Garantido, que é branco e tem um coração vermelho na testa. A torcida azul é a do boi Caprichoso, que é preto e tem uma estrela azul na testa. A banda do Garantido é a Batucada, do Caprichoso é a Marujada de Guerra. Por motivos óbvios (vermelho, coração e não-guerra), escolhi o Garantido para chamar de meu. O Boi-Bumbá é uma coisa séria no norte do país e eu não ia ficar em cima do muro em um assunto dessa gravidade.
A Orquestra Amazonas Filarmônica é, atualmente, regida pelo maestro Luiz Fernando Malheiro. Foi criada pelo Júlio Medaglia em 1997 que, por acaso, é amigo-de-amigo mas não o conheci.
O maestro Luiz Fernando Malheiro é uma simpatia. Muito generoso e didático, explicou ao público o que iríamos ouvir. Os prelúdios de Liszt e primeira sinfonia de Tchaikovski. Mostrou o começo dos movimentos das duas peças, contextualizando e demonstrando o que significam. Pede uma salva de palmas para todos os amazonenses que estavam pisando pela primeira vez no teatro. O teatro apinhado de gente até o teto. Todos os andares ocupados. Comovente.
Saio do teatro ainda um pouco abalada pela filarmônica e deságuo na festa dos bois.
Está tocando o hino do Garantido.
Nesse tumulto, eu vou além da exaustão.
Apropriado.