Ás do jazz

O superpoder da organização, uma memória invejável e certo desdém com as celebridades instantâneas
Ilustração: Oliver Quinto
08/02/2024

Não falha. É só alguém me entregar um trabalho qualquer, não importa de que tipo, que eu imediatamente entro em modo de sobrevivência. Começo a fazer conta de prazo de trás para a frente. Organizo mentalmente a minha vida, o espaço, a família, a agenda cheia de Nina Simone, os problemas do Brasil, do planeta, da galáxia.

Acho mesmo que meus superpoderes são organização de trabalho e gestão de tempo.

Compenso isso com o superdefeito da distração.

Nunca sei quem são as celebridades do momento, por exemplo. Se a pessoa não for do tamanho da Judi Dench, eu não sei quem é.

Fico chateada apenas porque isso soa, para quem não me conhece bem, como uma soberba, como uma desvalorização da cultura pop, algo assim. Não é. É attention span de uma mosca. Se a personalidade não esteve no meu radar nos últimos 5, 10 anos, eu não faço ideia de quem seja. Assim como os algoritmos, o meu cérebro também funciona por sobreposição e superexposição. Quanto mais percebo aquela informação, melhor armazeno e reconheço. Ou seja, funciono com índices de relevância de longo prazo. O que explica, também, o meu amor pela História da Arte.

O fato é que eu, de fato, sou uma pessoa organizada. Não fui uma criança ou uma adolescente assim, muito pelo contrário. Apesar de um passado que me condena, acabei me tornando uma adulta relativamente funcional.

As pessoas à minha volta, entretanto, aumentam essa característica para outros aspectos da vida. Acham que a minha memória é melhor do que é. Não é incomum me perguntarem dados completamente aleatórios como quando Van Gogh se mudou para Arles (1888), qual o nome do meio do Rembrandt van Rijn (Harmenszoon), quando o Youtube foi lançado (2005), o que é açodamento (pressa), etc.

Uma vez me acusaram de ter sonhos eróticos com planilha de Excel. Calúnia. Absurdo. Injustiça. O software obviamente é o InDesign.

Sou, como seria de se esperar, ótima com jogos que envolvem organização de cartas, como paciência ou crapô. Ao ponto de me acusarem de contar cartas. Calúnia. Absurdo. Injustiça. Eu não sei fazer isso (mas faria se soubesse).

Comprei, então, um embaralhador de cartas. Faz um barulho que Nina simplesmente odeia. É o negocinho começar a funcionar e a princesinha começar a latir cheia de ódio no coração.

Começo a achar que Nina conta cartas.

Isso explicaria muita coisa.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho