Um escritor fora de cena

Depois de dois livros que o consagraram como um grande autor, Raduan Nassar preferiu se exilar na vida rural, deixando para trás a vida literária
Raduan Nassar, autor de “Lavoura arcaica”
01/01/2022

Raduan Nassar não tinha cinquenta anos quando decidiu abandonar o sucesso que a carreira literária estava proporcionando. Lavoura arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978) receberam vários prêmios, e tudo aconteceu rápido: da metade para o fim da década de 1970, aquele que era até então um desconhecido escritor, praticamente inédito, conheceu o susto da fama.

As edições dos seus dois primeiros livros se multiplicavam, e repercutiam até internacionalmente. Nada gratuito, claro — apenas o resultado de uma disciplina mantida por anos a fio, e agora vinha o momento de recolher os frutos do trabalho. Exatamente por essa época, no entanto, Raduan abandonou a prática de publicação literária, negando-se à glória. Em 1984, comprou a Fazenda Lagoa do Sino e foi viver em Buri, sudoeste de São Paulo, dedicando-se à criação rural. De sua escrita, posteriormente os leitores encontraram somente uma novidade: Menina a caminho, livro de contos publicado primeiro em edição comemorativa dos 500 títulos da Companhia das Letras, em 1994, e três anos mais tarde reeditado em tiragem comercial.

Sua pequena obra — em termos quantitativos — bastou para torná-lo escritor expressivo, alvo de estudos acadêmicos. O mito que tentaram formar sobre sua opção de vida não é justificado: trata-se de algo espontâneo, talvez parte de uma consciência ampla sobre a vida e a essência das coisas. Sobre a leitura do mundo e o aprendizado intelectual, diz o próprio escritor:

E tem isso: a leitura que mais eu procurava fazer era a do livrão que todos temos diante dos olhos, quero dizer, a vida acontecendo fora dos livros. Dessa leitura da vida não senti exatamente orgulho, embora achasse a leitura mais importante a fazer, como escritor (…) Agora, apesar da importância que eu punha na leitura do Livrão (Livrão com maiúscula), é certo que muito do meu aprendizado foi feito também em cima de livros, especialmente de uns poucos autores, autores que iam ao encontro das minhas inquietações (…) Nunca senti muito apego pelos livros. Os livros que me sobraram estão esquecidos lá nas prateleiras, me pergunto sempre que é que estão fazendo ainda nas estantes (…) Sentia também outros apelos, necessidade de fazer coisas, no sentido inclusive braçal, devido à minha formação familiar.

A falta de “apego aos livros” revela-nos um homem distanciado das aparências e do materialismo. Bibliotecas imensas, às vezes repletas de volumes encadernados na mesma cor, com enciclopédias compradas por metro quadrado para enfeitar prateleiras embutidas ou servir de decoração às estantes da sala — tal é o cenário doméstico que ornamenta a rotina de tantos que são (ou se dizem) escritores. Ao contrário da maioria destas figuras, Raduan Nassar prefere as paisagens naturais.

A revista Cadernos de Literatura Brasileira, em seu segundo número, foi responsável por uma das mais completas entrevistas feitas com o autor, ilustrando suas matérias com fotos ao ar livre de um Raduan tranquilo, deitado na grama, sentado numa cadeira sob árvores ou bebendo café. Nenhum ambiente “intelectual” poderia servir de pano de fundo a este homem que parece extraído da terra, onde suas obras também estão firmemente plantadas.

A entrevista teve momentos polêmicos, e os mais fortes aconteceram a respeito da comentada opção de Raduan por se tornar um “ex-critor”. José Paulo Paes, em determinada altura da conversa, questiona de onde teria vindo o “relativismo radical” de Raduan Nassar, que afirmara certa vez não haver criação artística que pudesse ser comparada a uma criação de galinhas. A resposta foi incisiva: “Se eu fosse um sujeito equilibrado, eu não teria tido a liberdade de fazer aquela afirmação. Só desequilibrados é que descobrem que este mundo não tem importância. O bom senso seria uma prisão.”

Fugindo justamente do bom senso, do senso comum que forja para escritores um protótipo fixo, na entrevista Raduan Nassar fala sobre política, filosofia e experiências particulares, inclusive no manejo com a palavra. Acima de tudo, revela a autenticidade de não seguir modismos ou vibrações de glória: admite que sempre quis desenvolver o seu aprendizado da língua, crescendo através de leituras ou da observação do mundo.

Os livros de Raduan Nassar refletem a opção deste escritor que “saiu de cena”, pois sua obra caminha por fora da costumeira paisagem literária do Brasil pós-anos 64. Na época, a literatura tornava-se cada vez mais denotativa, assumindo uma postura contra a opressão política, e praticamente adquiria um caráter jornalístico de retrato da realidade.

Escritores como Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, Ivan Ângelo e Antônio Callado partilhavam a missão de denunciar os problemas sociais. Ao contrário, autores como Osman Lins, Clarice Lispector e Raduan Nassar rompiam com a homogeneidade dos temas políticos, sem, contudo, fazer obras alienadas. Seus textos refletem também uma visão pungente sobre a humanidade — mas pode-se dizer que seu engajamento principal é com a linguagem poética. Enquanto alguns escritores sacrificavam o lirismo em nome do conteúdo denunciatório, outros desenhavam uma linha artística mais voltada para os questionamentos existenciais, e, ao lado deste compromisso com a reflexão interior, trabalhavam com uma linguagem mais ornamentada.

Com tanto brilho e tantas luzes vindas com a fama, Raduan Nassar, homem simples, nascido de pais libaneses em Pindorama, São Paulo, decidiu também sair da cena da “mídia” literária. Resgatou seu prazer da infância, retornou ao campo, à criação de animais domésticos, ao descompromisso dos dias puros. A relação entre vida e escrita, aliás, é algo fundamental na criação artística deste autor. Podemos lembrar as palavras de Ruth Silviano Brandão: “Para falar do sujeito que escreve (…), deve-se pensar numa escrita-inscrição, em que ele se constitui, não de forma definitiva, pois o escrever se confunde com o viver, pela via do desejo”.

A carreira literária tinha, de certo modo, artificializado a rotina do escritor: vieram aclamações e elogios, críticas e eventos — mas em nada daquilo estava a essencialidade que ele experimentou na infância, e que não deixaria de desejar, quando adulto. Como diz José Castello em Inventário das sombras, a atitude de Raduan Nassar não reflete “uma postura contra a literatura, mas sim contra as exigências secundárias que o ato de escrever demanda”. Em outro momento, o mesmo crítico afirma: “A história de Raduan exibe os desconfortos, os desgostos, as pressões a que os escritores, e os artistas em geral, estão sempre expostos. Ele precisa se descolar dessa identidade, recusá-la, para então existir”.

Em homenagem a esse autor ímpar dedicaremos esta coluna Tudo é Narrativa, nos primeiros meses de 2022, a um ciclo de textos analíticos concentrados na estética de Lavoura arcaica e Um copo de cólera. Aguardem a sequência!

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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