Um discurso teatralizante

Embora não sejam peças teatrais, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, de Raduan Nassar, têm valor de texto dramático
Raduan Nassar, autor de “Um copo de cólera”
01/02/2022

Os dois romances de Raduan Nassar, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, têm a predominância épica (narrativa) em sua classificação. Diferentemente do texto escrito para o teatro, nestas obras não existe o drama puro, “como um mecanismo que se move sozinho”. Entretanto, a mobilidade do gênero dramático pode admitir práticas numa nova situação literária. Um texto híbrido pode estabelecer uma insólita função para o trágico. A questão da memória, por exemplo, faz pensar sobre este aspecto.

A volta no tempo é característica essencialmente épica, visto que a ação dramática deve acontecer no presente. Enquanto nas obras teatrais as personagens se transformam em objeto, objetivo do drama, no gênero épico verifica-se a oposição sujeito-objeto: “A personagem que recorda se divide, olha para outra parte de si mesma” e estabelece tal dualidade, conforme Renata Pallottini.

Contudo, se em Lavoura arcaica temos com frequência o uso da memória, isto pode não ser exclusivamente épico. Kathrin Rosenfield, por exemplo, afirma que projeções cênicas do passado são “essencialmente monológicas e por isso de caráter lírico-épico (lírico, por serem expressão de estados íntimos; épico, por se distenderem através do tempo; ademais, o lírico, na sua estrutura de peça teatral, tem sempre cunho retardante, épico)”.

A partir de reflexões nesse sentido, notamos o caráter misto dos livros de Raduan Nassar. Lavoura arcaica e Um copo de cólera seriam preferencialmente incluídos no gênero épico, devido à presença do narrador que retrocede e avança, intervém e expande a narrativa em tempo e espaço.

Porém, através dos diálogos (e sobretudo dos monólogos), encontramos nestes livros uma carga dramática que garante o seu discurso teatralizante. Embora não sejam peças teatrais de fato, que exigem o palco para completar-se cenicamente, as obras têm um valor de texto dramático, a partir das falas das personagens, das quais nascem manifestações de atitudes contrárias — o conflito, a ação dramática, em suma.

Ainda é Rosenfield quem esclarece: “O que se chama, em sentido estilístico, de ‘dramático’, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários, produzindo o conflito”.

Assim, embora existam divergências inegáveis entre as obras de Raduan Nassar (escritas para serem lidas, graças ao seu caráter discursivo) e uma peça de teatro, defendemos a presença dramática dentro de um todo épico, como ponto de partida para o nosso debate, neste ciclo de textos. Buscaremos o fio condutor de um discurso teatralizante em Lavoura arcaica e Um copo de cólera.

Como a palavra drama (em grego, drama, ação) sugere, para delinearmos dramaticamente uma personagem “devemos ater-nos à esfera do comportamento, à psicologia extrospectiva e não introspectiva”. De fato, se comparamos os dois gêneros, o épico tem seu ponto forte na figura do narrador, o que não acontece no teatro. Neste, tudo se concentra na personagem, que atua em tempo real. No teatro, não há, comumente, o recurso de explicitar detalhes da trama através de um narrador. Daí que o lado introspectivo, psicológico, acaba sempre sendo mais bem explorado por romances.

Tanto em Lavoura arcaica como em Um copo de cólera, o conflito se estabelece de forma clara para as personagens, e em grande parte através da citada “psicologia extrospectiva”. É a partir do confronto que a ação dramática será delineada, com um conflito acontecendo de forma predominantemente cênica, cheia de apelos visuais.

Em Lavoura arcaica, a potência teatral se instala em torno do confronto entre o personagem André e seu pai. Insurgindo-se contra a tradição e as regras ditadas pelo pai, o rapaz vive uma paixão incestuosa pela irmã e acaba por fugir de casa. Ele se afasta da tradição de sua família, dos tabus construídos ao longo de séculos pelo clã patriarcal, mas depois retorna — e para quê? Simplesmente para reconhecer os hábitos de sempre, embora algo tenha se modificado: os atos tornaram-se irreversíveis e não podem ser perdoados.

A dubiedade de cada personagem transparece, principalmente no caso de André e Ana. O próprio nome de Ana sugere a ideia de movimento contrário, palavra que pode ser lida por dois lados. Ana aparece como a irmã sensual, capaz de executar uma dança dionisíaca, numa espécie de encontro familiar que em tudo lembra um antigo rito de fertilidade. Vale a pena citar a maior parte do trecho, que transmite uma vibrátil sensação de movimento pela simples leitura:

(…) e ao som da flauta a roda começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente, cortando encantada o bosque, correndo na floração do capim e varando os pastos, e a roda então vibrante acelerava o movimento circunscrevendo todo o círculo, e já não era mais a roda de um carro de boi, antes a roda grande de um moinho girando célere num sentido e ao toque da flauta que reapanhava desvoltando sobre o seu eixo, e os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando o novo ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda (…) ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase um cântico, nas vozes dos mais velhos.

O aspecto religioso funde-se ao libidinoso, com a dança. Da mesma forma, Ana também pode esconder sua sensualidade em devotas preces. Pedro comenta que, logo após a partida de André, a irmã se fechara na capela, num “piedoso mutismo”.

Ainda acerca da dança, encontramos neste episódio como que uma invocação dionisíaca para as ações dramáticas que virão, no desenrolar da história. Sabendo que a origem da tragédia é atribuída aos cultos a Dionísio, fica interessante compreender este ritual de oferendas de música, bebida e movimento como um preâmbulo para a tragicidade que vai ser construída.

No próximo texto de nossa série, continuaremos a desenvolver esta análise.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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