Ossos e abricós

Há um potencial de ficção em toda e qualquer rotina. Basta ficarmos atentos para encontrar o fio que desvenda todo um tecido, com sua trama
Ilustração: Mariana Tavares
01/03/2021

O caderno vermelho, de Paul Auster, é um livro que sempre me faz recuperar a disposição mágica, quando ela está escassa. Trata de episódios de “coincidência” ou sincronicidade, encontros milagrosos, guinadas do destino experimentadas pelo próprio autor ou por amigos dele — situações tão inverossímeis que, se estivessem num filme, e não na vida, serviriam para rotulá-lo de fantasioso em demasia. As tais conexões parecem favorecidas pela “intensidade dos pensamentos” que manda “um sinal pelo mundo afora”, algo que se popularizou como “lei da atração”.

Ora, eu me encontrava numa época de mesmice pós-quarentena naquele fatídico 2020 (que na verdade ainda não acabou) e resolvi apelar para as confluências energéticas — ao menos para me divertir um pouquinho, catalogando uma cadeia de aventuras ou acasos, que poderia ou não trazer uma mensagem implícita. Eis o que aconteceu.

Eu voltava de uma viagem que, dentre outras finalidades, servira para que me submetesse a um tipo de exame dendrológico, após vários meses estudando informalmente árvores. Pois desse trajeto sertanejo, devo confessar que quase trouxe um crânio de boi para dar sorte. Cheguei à iminência de carregar a mandíbula branquíssima, afiada ao modo da arma com que Sansão massacrou os filisteus — mas desisti, com medo de profanar despojos. Logo no dia seguinte ao retorno, eu me pus a ler Mulheres que correm com lobos — e aí encontro a história da velha-loba, que canta sobre ossos, para encantá-los. Vale a pena trazer aqui a passagem:

Ela se arrasta sorrateira e esquadrinha as montanhas e os arroios, leitos secos de rios, à procura de ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca da criatura está disposta à sua frente, ela senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar.

Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É aí que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pelos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado.

La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar.

E La Loba ainda canta, com tanta intensidade que o chão do deserto estremece, e enquanto canta, o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro.

Pouco depois, num parque onde me encontrei com uma amiga, sentadas sob um abricó falamos sobre esse título da Clarissa Pinkola Estés, dentre outras referências de histórias com personagens e autoras mulheres. Pensei então na Herta Müller, nos dois livros dela que me aguardavam, ainda intocados. Quando cheguei em casa, peguei o primeiro que vi — O rei se inclina e mata — e comecei a lê-lo como se estivesse esfomeada. A presença de um abricó, na paisagem das primeiras páginas, fez com que eu parasse, suspensa num tipo de elo transcendental.

No trecho, Müller menciona a árvore que “não se envergonhava de florescer” no pátio de sua casa, e que passou a estar associada com a ausência de seu pai, tanto quanto as ferramentas que em vida ele usava: “Com os olhos eu adentrava as árvores de modo tão irracional que os galhos ainda curtos e pelados se pareciam incrivelmente com as pequenas chaves de fenda”.

Mais adiante, a escritora lembra como em Berlim encontrou um pé de abricó, sem o procurar e mesmo contra as probabilidades climáticas: “Para mim a árvore é um pedaço de vilarejo que escapou; é muito mais velha do que minha estada na Alemanha”. Aquela presença orienta sua rotina:

Através do lado da rua que escolho, tenho de decidir se visito a árvore ou se prefiro desviar-me dela. Decidir isso não é uma grande sensação. Digo a mim mesma: vejamos como ela está hoje. Ou: que ela me deixe em paz hoje. Não é o pai que me empurra para as visitas, não o vilarejo, não o país — nada de saudades. A árvore não é peso nem alívio. Ela só está ali como um travo daquele tempo. O que me range na cabeça em sua proximidade é meio açúcar, meio areia. A palavra “Aprikosen” [abricó] é lisonjeira, ela soa a “liebkosen” [fazer carinho].

Eu sei que esses laços temáticos estão o tempo todo acontecendo — mas na maioria das vezes os ignoramos, considerando que aquela recorrência é um dado trivial, ou não significa nada, ou, ao contrário, significa algo enorme, tão poderoso que jamais chegaremos a decifrá-lo; portanto, a ignorância passa a ser nossa condição de calma, manutenção de sanidade.

Eu, entretanto, prefiro a curiosidade: a observação e desvendamento, ainda que as conclusões escapem. E me fascina acompanhar esse roteiro de um Grande Narrador que vai soltando pistas, como se fossem sementes ou vestígios que sequer sabemos que existem. Contenho a vontade de encontrar uma resposta específica, um tesouro no fim do mapa dessas aventuras. O próprio mapa é o tesouro, como diz minha amiga Fernanda Meireles. Para ajudar a fruir melhor desse trajeto num escuro com relâmpagos, lembro outro trecho da Herta Müller, quando ela comenta que só o ocidente desenvolve a “crença de que não se pode suportar o que não tem sentido”.

A propósito, o surrealismo talvez tenha sido a única reação saudável da nossa cultura diante do absurdo dos fatos — e, usando o espelhamento de temas, soube explorar o humor que há nesses emaranhados. Afinal, o nonsense restaura uma espécie de conforto mental pela via da comicidade. Rir do que não compreendemos, observar os sinais sutis do universo, seguir a intuição de modo implacável… esses são procedimentos que aperfeiçoo para viver, sabendo que o mais importante é a margem para o improviso.

Cada momento intrigante permanece pulsando, como “um modo de lembrar a mim mesmo que não sei nada, que o mundo onde vivo continuará me escapando eternamente”, diz Paul Auster — e ressalta que, no meio dessa rede de aventuras, há muitas outras conexões que passam despercebidas. São intervalos insignificantes, em que inclusive escapamos do fim sem ao menos reparar nisso: o segundo exato em que descemos de um ônibus prestes a colidir, o passo que nos livrou do vaso caído da janela de um prédio, o voo desmarcado inexplicavelmente, a festa cancelada, a amizade rompida… Quem sabe a série de eventos graves que daí sucederia, em hipóteses variadas?

Há um potencial de ficção que permanece ardente em toda e qualquer rotina. Basta ficarmos atentos para encontrar o fio que desvenda todo um tecido, com sua trama.

Em tempo: no livro citado, Auster também conta curiosos fatos que envolvem sua esposa, Siri Hustvedt, que vim a conhecer como escritora seguindo o impulso de comprar um de seus títulos após um manuseio rápido na livraria. Eu nunca ouvira falar dela antes, mas A mulher trêmula acabou se tornando uma valiosa referência: tratei desta obra no texto O outro que me habita, publicado aqui no Rascunho, em abril de 2019, e já utilizei bastante este livro em sala de aula.

É agora em Siri Hustvedt que encontro — aparentemente ao acaso — mais um trecho que vem enlaçado com minha viagem, com o crânio e as árvores tão próximos. N’O verão sem homens, a protagonista escreve um poema durante uma crise emocional, e ele termina bem assim: “Escolho uma figura do meio do nada,/ de um furo na mente/ e olho, ali na prateleira:/ um osso florido”.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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