Os coléricos de Nassar

O sexo é a única possibilidade de integração entre as personagens de "Um copo de cólera", já que o diálogo através de palavras é improvável
Ilustração: Beatriz Cajé
01/04/2022

Temos demonstrado, nos textos anteriores desta série dedicada a Raduan Nassar, como o caráter teatralizante de seus livros pode ser percebido por uma disposição ambígua de seus enredos: são construídos dentro do gênero épico, por serem narrativas, mas trazem o estilo do gênero dramático. Assim, como parte sequencial de nosso estudo, passaremos à análise de Um copo de cólera — obra que traz grandes afinidades (e não só no aspecto dramático) com Lavoura arcaica.

O livro demonstra uma explícita circularidade, visto que o último capítulo traz o mesmo título do primeiro: A chegada. Muda, entretanto, a personagem narradora. Quem primeiro assume o comando da história, e durante grande parte de livro, é o protagonista masculino. A mulher atinge o monólogo e alcança a postura referencial da cena somente no final, no capítulo de encerramento que surge como um ciclo, reiniciando a história, sob outra perspectiva.

O fato de que a personagem masculina (nenhum dos dois, homem ou mulher, receberá nome próprio, nesta obra) domina a voz narrativa em praticamente todo o livro, é sintomático. Sabrina Sedlmayer atentou para a circunstância de que em Lavoura arcaica as mulheres quase nunca eram escutadas: “Com Ana, Rosa, Zuleika, Huda e a mãe — as personagens femininas do romance —, em nenhum momento da narrativa encontraremos o diálogo do narrador, que sempre se dirige aos homens, Pedro, Lula e Iohána”.

Em Um copo de cólera, também é o lado patriarcal que se evidencia, com a predominância do discurso do homem, que parece reger toda a narrativa a partir do seu ponto de vista particular. Entretanto, desta vez a mulher se faz ouvir, e deste choque de falas é que se produz a tensão.

A princípio, logo no primeiro capítulo, o leitor tem noção da total incomunicabilidade entre os amantes. O jogo amoroso faz-se presente, baseado na falsidade das aparências:

(…) e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente (…), depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate (…), e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse.

O capítulo seguinte, “Na cama”, acrescenta novas considerações sobre o jogo amoroso, a estranheza do relacionamento a dois. Interessante é observar que, para a análise deste livro, convém seguir-lhe as páginas em sua sequência normal, visto que o tempo cronológico, através da sucessividade das ações, aparece aqui mais marcado do que em Lavoura arcaica. A estrutura deste último livro, antilinear por excelência, nos remete aos traços barrocos da construção literária em Raduan Nassar. Porém, ainda teremos oportunidade de ver, de outro modo, o barroquismo presente também em Um copo de cólera.

Em Na cama, o jogo de sedução já pode ser visto numa perspectiva cênica (teatral), como se confere na seguinte passagem, em que a personagem calcula o efeito de suas ações, o poder visual que elas terão:

(…) e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos pra minha andança no quarto (…), e eu, sempre fingindo (…), eu ia e vinha com meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por instantes ao banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama, fiquei aguardando por ela já teso e pronto.

O sexo parece mesmo ser a única possibilidade de integração entre as personagens, em Um copo de cólera: o diálogo corporal estabelece a comunhão que, através de palavras, torna-se improvável. O poderio masculino se evidencia em várias passagens ligadas ao sexo: o macho é visto como o todo-poderoso da relação — embora (como veremos mais adiante) seja exatamente neste ponto que a mulher vá insultá-lo, no momento do clímax dramático. Entretanto, durante a comunhão dos corpos, o poder é do homem, como quando ele comenta que levava a companheira “invariavelmente a dizer em franca perdição ‘magnífico, magnífico, você é especial’”.

A disputa começa pelo terreno das palavras. Se os amantes se afinam no sexo, quando se trata das ideias, tudo muda. A explosão inicial, a deixa para que a disputa comece, é criada a partir da reação do homem diante do estrago que as formigas fizeram na cerca-viva do terreno. Em sua raiva desmedida, no susto e no ódio que exprime contra os insetos, vai todo um desejo de preservar os limites da casa, e, por extensão, os limites do eu — desejo que constrói também uma barreira contra o outro, para conservar a ideologia da personagem a salvo de qualquer invasão.

Diante da reação intempestiva do companheiro, a mulher assume a posição contrária, de calma e crítica. O ódio do protagonista se intensifica, quando a mulher o atinge com ironia, advertindo-o para que use a razão. Seu desejo é o de explodir, “esbofeteá-la na cara”, mas consegue controlar-se, questionando seus impulsos de reagir à provocação: “(…) não que eu cultivasse um gosto raivoso pelo verbo carrancudo, puxando aí pro trágico, não era isso e nem o seu contrário, mas a ela, que via naquela prática um alto exercício da inteligência, viria bem a calhar”.

A situação vai se tornando tensa, preparando gradualmente o conflito. O aspecto teatral invade o texto de forma decisiva, como quando o narrador diz que “já puxava ali pro palco” quem estivesse a seu alcance, pois “haveria de dar um espetáculo sem plateia”, forjando dessa vez, na voz, a mesma aspereza que marcava sua “máscara”. Prepara-se o disparo inicial, faltando apenas o mote, a gota d’água para o estouro: “eu cavalo só precisava naquele instante dum tiro de partida, era uma resposta, era só de uma resposta que eu precisava”.

Presenciando o discurso agressivo do companheiro, a mulher prepara-se para o confronto. Os indícios teatrais apontam para a força dramática que o texto assumirá: “deglutindo o grão perfeito” do seu chamariz e representando o “seu papel”, ela “entrou de novo espontaneamente em cena”. A expressividade também se valoriza: ao descrever o rosto da mulher, o narrador diz que ela desenhava “enfim na mímica o que a coisa tinha de repulsivo”.

O homem atua em ânsia de domínio e poder viril, comentando que não iria confundir “um arame de alfinete co’a iminente contundência” do seu “porrete”, tentando não se impressionar com a mulher, com as “unhas que ela punha nas palavras”. O artifício do homem é o desprezo; chega a considerar a mulher apenas como alguém com quem se pode contracenar, pois ele precisava “mais do que nunca — para atuar — dos gritos secundários duma atriz”, querendo apenas ouvir o seu próprio “berro tresmalhado”.

O temperamento explosivo deste homem dará ensejo a comparações com o André, de Lavoura arcaica. Não só os dois vivem em ambientes rurais (assim como também o próprio Raduan Nassar), mas em várias passagens de Um copo de cólera podem-se observar referências ao aspecto marginal ou diabólico que a personagem masculina assume — da mesma forma que André se declarava maldito, ovelha negra da família. Ora é a mulher quem chama o companheiro de “demoníaco”, num tom de sarcasmo, ora é o próprio homem quem afirma: “(…) te digo somente que ninguém dirige aquele que Deus extravia!”. Ficar à margem das regras é uma posição assumida pelos dois protagonistas.

Também o próprio Raduan Nassar poderia dizer o mesmo: a margem agora é a minha graça.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho