O demônio favorito

“Diários”, de Sylvia Plath, levam o leitor à intimidade, ao interior do pensamento privado, sem disfarce ficcional
Ilustração: FP Rodrigues
24/12/2018

A recente edição brasileira dos Diários de Sylvia Plath levou-me de volta a esta autora. Eu, que anos atrás tinha lido com admiração os viscerais versos de Ariel, nunca me detivera no suicídio de Sylvia com grande atenção. Talvez apenas tenha deixado escapar um lamento diante d’A redoma de vidro, que anuncia um talento narrativo infelizmente condenado — pelas circunstâncias — a jamais amadurecer.

Os Diários, entretanto, pelo próprio gênero textual, forçam uma atitude diferente. O leitor cai na intimidade, no interior do pensamento privado, sem disfarce ficcional. Eu conheci o impulso primário de Sylvia, aquele que provavelmente ela despejava com máxima urgência — mais até do que na poesia. E (confesso) não esperava a força de tantas reflexões — nem esperava desmascarar o mecanismo de fetiche comercial que se criou em torno da escritora e de sua vida.

Neste último aspecto, fui auxiliada pela biografia escrita por Janet Malcolm, A mulher calada. Seguindo a tendência usual a vários de seus livros, também neste Malcolm levanta a bandeira de como a verdade é escorregadia, com cada versão exibindo os seus próprios interesses. A ambiguidade do título aqui se evidencia: A mulher calada pode, no impacto inicial, sugerir um perfil de submissão e timidez (uma mulher levada a se calar — e o suicídio parece endossar essa tendência interpretativa). Mas no decorrer das páginas encontramos um episódio em que Sylvia desafia sua cunhada Olwyn com persistente silêncio, no meio de uma discussão: “Olwyn ataca Sylvia verbalmente, mas suas palavras não passam de palavras; a mudez (medusal) de Sylvia Plath é que é a arma mortífera, impiedosa”.

A revelação de uma mudez hostil e de uma “voz má” surge nos melhores escritos literários e nos Diários de Sylvia Plath. Ainda muito jovem, a poetisa manifesta absoluta lucidez, tanto sobre suas ânsias como suas limitações:

Entre os milhões, ao nascer eu também era tudo, potencialmente. Eu também fui cerceada, bloqueada, deformada por meu ambiente, pela manifestação da hereditariedade. Eu também arranjarei um conjunto de crenças, de padrões pelos quais viverei.

Ela detecta na sociedade — que vê como o seu “demônio favorito” — a grande causa das limitações, principalmente por causa dos códigos de comportamento feminino:

Tenho consciência demais arraigada em mim para romper com os costumes sem efeitos desastrosos; consigo apenas debruçar-me invejosa na beirada e odiar, odiar os rapazes que podem esbanjar livremente o apetite sexual, sem receio, permanecendo íntegros, enquanto eu me arrasto de encontro em encontro ensopada de desejo, sempre insatisfeita.

Janet Malcolm lembra que em 1956 “não havia movimento ou teoria feminista, e as relações entre homens e mulheres se encontravam no apogeu do inevitável delito transferencial. Que os embates entre Sylvia Plath e a literatura tenham se fundido com sua inveja e ressentimento em relação aos homens não é surpreendente”. Essa tendência inclusive gerou um maniqueísmo entre as figuras da escritora e seu marido Ted Hughes, também poeta: para a cunhada Olwyn — ainda conforme Malcolm — até hoje Sylvia é “representada como uma antagonista silenciosa, poderosa e sinistra” de seu irmão.

Na contramão dessa ideia, pintada como vítima de um marido egocêntrico e infiel, Sylvia Plath virou emblema de luta para muitas feministas. Embora não falte quem lhe critique a “covarde” e “egoísta” atitude de se matar, deixando dois filhos pequenos (um dos quais no futuro, aos 47 anos, repetiria o seu gesto), a maior parte das vozes se elevou contra Hughes — que divulgaria ao longo dos anos (com várias mutilações) os diários e cartas da ex-esposa, lucrando financeiramente com sua fama póstuma, sim, mas vivendo sob uma espécie de maldição dessa mulher talentosa e enlouquecida: uma imagem tão poderosa que esteve a ponto de esmagá-lo, principalmente quando reprisada por Assia Wevill. Ela, que foi a mulher com quem Hughes traiu Sylvia, matou-se em 1969, utilizando o idêntico método de se envenenar com gás — mas sua decisão envolveu também a filhinha que tivera com Ted, dois anos antes.

Essa “voz má” de Plath — ou mesmo o seu silêncio combativo — seria sintoma de um temperamento ávido e narcisista, potencializado (ou justificado) por uma doença mental que a levou ao suicídio? O público das várias biografias escritas sobre a autora continua ávido por explicações. Mas não esqueçamos que a tentativa de classificar o psiquismo de alguém é tarefa muito complexa, e qualquer rótulo empobrece. Um livro como o de Phyllis Chesler, Mulher e loucura, ajuda a refletir a respeito das pressões sobre as mulheres da década de 1950, criadas para regular seu psiquismo dentro de um modelo “aceitável”. Sobretudo, alerta para as tradições deste pensamento que continuamos a encontrar, de um modo às vezes tão agressivo.

Afinal, imaginando Sylvia Plath encarnada, digamos, numa atual jovem brasileira, ela certamente poderia afirmar o que vai nesta passagem:

Um homem, se escolher ser promíscuo, pode continuar torcendo o nariz para a promiscuidade, do ponto de vista estético. (…) Mas as mulheres também desejam. Por que devem ser relegadas à posição de zeladoras de emoções, babás de crianças, alimentando sempre a alma, o corpo e o orgulho do homem? Ter nascido mulher é minha tragédia horrorosa. (…) Sim, meu desejo ardente de me misturar a turmas de operários, marinheiros e soldados, a frequentadores de bares — fazer parte de uma cena, anônima, ouvindo e registrando — tudo isso é prejudicado pelo fato de eu ser uma moça, uma fêmea que corre sempre o risco de ser atacada e maltratada. Meu interesse imenso pelos homens e suas vidas é frequentemente confundido como desejo de seduzi-los, ou como um convite à intimidade. Mas, meu Deus, quero conversar com todo mundo, o mais profundamente que puder. Quero poder dormir em campo aberto, viajar para o oeste, andar livremente pela noite…

Devemos admitir que mais de meio século se passou, mas o demônio que perseguiu Sylvia permanece à solta, estimulando várias fontes de maldade em torno — e dentro — das mulheres.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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