O coração e a serpente

São tantos os quereres, que parece impossível evitar a tentação em alguma medida
Ilustração: Mariana Fujsawa
31/08/2018

Desde o século 14, numa capela de Pádua, certo afresco de Giotto lembra a fusão de valores em torno dos vícios e virtudes. Uma criatura feia, que cospe uma serpente e leva um saco repleto de moedas, contrapõe-se ao seu extremo bondoso: a generosa mulher que segura uma cesta farta e — em suave coreografia — entrega o próprio coração a Deus, representado pelo minúsculo profeta no canto superior da imagem. Ora, esta fértil camponesa é a personificação da Caridade, a virtude que se costuma opor aos terríveis impulsos de avareza.

Para Giotto, porém, a Caridade forma um par maniqueísta com a Inveja. É ela quem vomita a víbora — e, se por este gesto podemos associá-la às maldades e infâmias características de um invejoso, por outro lado o tal saco com moedas nos faz pensar no apego aos bens, traço constitutivo dos avarentos. É pela idolatria material que a figura parece assar nas chamas que lhe sobem pelas pernas. A serpente a sair de sua boca, assim como os olhos inflamados e a orelha pontuda, talvez contribua muito mais para a repulsa que o pintor pretendeu inspirar, no retrato do vício. Uma aparência diabólica, aliás, fazia parte da identificação de Mamon, o demônio do dinheiro, príncipe do inferno também pintado a carregar uma sacola cheia.

A complexidade em torno das representações dos pecados não se resume a este exemplo — mas ele nos bastará, por enquanto. A questão imagética mostra, em termos bem didáticos, o quanto oscilam as interpretações e como elas podem se cruzar. Se a Caridade é virtude inquestionável, qual seria o seu contrário? Inveja, ganância ou avareza (alguns podem apontar ainda a gula e a luxúria) circulam, todas, por relações de desejo. O indivíduo que ambiciona e jamais encontra saciedade é um viciado — e uma vítima dos anseios.

São tantos os quereres, que parece impossível evitar a tentação em alguma medida. Mas há, vamos admitir, temas dignos de cobiça, enquanto outros apenas revelam modismos, satisfações superficiais ou falta de criatividade do pretenso ambicioso. Assim acontece quando alguém hoje suspira por veículos, aparelhos eletrônicos, dinheiro, roupas — elementos que não têm valor para além da necessidade social que lhes foi imposta. Ter ganas de agir, em vez de possuir, já indica vontade um pouco mais refinada. A ação pode se traduzir numa viagem, numa mudança de emprego ou na decisão de conquistar a pessoa por quem se está enamorado: em todo caso, a ambição se volta para uma experiência, não para uma coisa, propriamente.

O ponto seguinte — que muitos nunca alcançam — é o desejo de algo abstrato, de mudança íntima. Pode envolver desde o crescimento intelectual até um amadurecimento místico. É claro que, para se aproximar deste alvo incorpóreo, faz-se necessário algum procedimento físico: frequentar um curso, dedicar-se a leituras ou meditações etc. O impulso, em qualquer medida, impõe esforço e planejamento estratégico; o problema não está aí.

Na escala viciosa, o pior ganancioso somente chafurda na inveja: é mesquinho e egoísta, autocentrado; quer o que os demais têm, e quer só para si. Às vezes — num nível extremo de avareza — não quer nem mesmo assim. Esconde os benefícios de sua própria pessoa, tranca os bens em cofres, torna-se um obsessivo guardião daquele tesouro, em louca idolatria. Com exceção destes casos perniciosos, a ganância pode até ser uma qualidade. Se funcionar como élan, motivação, meta a seguir sem prejuízo alheio, qual o pecado? A ganância em tal sentido é um trampolim, é o começo do mundo. No princípio bíblico ela já se destacava, como luz imperiosa precisando brilhar, explodir, fazer-se conquista. Mas então — óbvio — a vontade divina excluía a posse ciumenta; era autêntica abundância, ganho em puro senso de fartura.

Ninguém faz votos de escassez ao felicitar uma pessoa. Ao contrário, conforme a tradição desejamos prosperidade, vida fecunda como equivalente a feliz. Mas a boa medida aqui se torna decisiva: riqueza em excesso costuma trazer inquietações. Desconfianças, medo, urgências no ritmo vertiginoso criado pelo fetiche de acumular — tudo isso deve ter o efeito de uma armadilha. Perto de um milionário neurastênico, qualquer boiadeiro será mais saudável.

Para voltar à Caridade, esta camponesa virtuosa não indica exclusivamente altruísmo, gesto em direção ao outro. Ser desprendido é, de fato, uma atitude libertária: basta lembrar Francisco doando até a roupa e tornando-se o primeiro santo performático e naturista do mundo — ou então Gautama renunciando ao trono no Nepal para sair em errância iluminada. O desapego, antítese da ganância, além de promover uma aura de santidade, prova que a renúncia material envolve um estado de sabedoria. É provavelmente a melhor maneira de deixar o coração leve, antes que a serpente nos morda no paraíso…

Não se trata, portanto, de anular a ganância por completo. Isso equivaleria a deixar de viver. Mesmo o não querer nada pode ser entendido como um anseio — o da autoplenitude, da satisfação com o fundamental. O lado ressequido e estéril das vontades, a avareza, deixa de existir quando o desejo se expande dessa maneira. Se nos enxergamos enquanto seres mais fartos que frágeis, mais realizados que humildes, só então — depois deste reconhecimento pleno — arriscaremos querer o máximo. Ousaremos querer tudo, a completude que já não nos mutila se falta, porque temos o essencial, e o essencial extravasa.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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