A perfeição de Piero

Publicado pela Cosac Naify em 2007, livro que reúne os estudos sobre Piero della Francesca mostra a peculiar dicção do crítico italiano Roberto Longhi
Ilustração: Igor Oliver
02/04/2021

O famoso estudo de Roberto Longhi a respeito de Piero della Francesca é o tipo de material que se torna deleite não só para os interessados em pintura, mas também em arte literária. Sua pesquisa sobre estruturas figurativas e verbalização da imagem esmiúça, de modo infalível, o elo mágico entre as linguagens. Além disso, como professor na Universidade de Bolonha entre os anos de 1934 e 1943, Longhi soube articular investigação e produção artística de seus estudantes — muitos dos quais foram responsáveis por exposições na época do pós-guerra. Para nós, que não tivemos a sorte de compartilhar tempo e espaço com ele, restam seus livros, porta direta para o pensamento.

O volume publicado pela Cosac Naify em 2007, reunindo os estudos sobre Piero della Francesca (intitulado apenas Piero della Francesca), traz a peculiar dicção do crítico. Muitas vezes carregada de floreios, ela acaba por adquirir tom irônico, em alguns instantes chegando ao humor escancarado, como por exemplo quando Longhi descreve um mantel que “desce com a facilidade de um teorema de Euclides” ou analisa um “Cristo horrendamente silvestre e quase bovino, como um sisudo meeiro úmbrio detendo-se, rústico, a contemplar da borda do sepulcro suas propriedades terrenas”.

Também podemos sorrir à descrição de um menino Jesus “obeso e linfático, como todos os contemplativos fundadores de religiões orientais, com aquela infância altiva e triste que, como nos bizantinos, parece se assemelhar à velhice — e o que dizer de um anjo com “rosto mestiço esmaltado e olhinhos de elefante sagrado”? Tudo isso são efeitos de um excesso verbal: se no primeiro momento pode parecer estranho pensar que uma pérola, digamos, poderia ser confundida com “uma preciosa secreção daquela colônia de rizópodes a que vimos se reduzir, sob as raras circunstâncias luminosas, a massa vermiculada dos cabelos”, à medida que o texto avança essa afetação nos diverte e parece gerar leveza, no diálogo com as imagens.

O mais importante, entretanto, é que — ao apontar a perfeição de Piero della Francesca — Longhi não pretende com isso idealizar o artista de modo alucinado, mas acima de tudo busca entender como foi possível o desenvolvimento de uma personalidade como a sua, na cultura figurativa do Quatrocentos. Para isso, recorda-lhe o nascimento, em 1410, “em Borgo San Sepolcro, no alto vale do Tibre, divisa entre a Toscana e a Úmbria”, assinalando como “inquestionável que suas primeiras impressões artísticas, quando menino, derivaram do Trezentos sienense”. O seu amadurecimento estético, porém, ocorreria entre 1435 e 1440, em Florença: “Ali, ele viria a refletir de maneira bem diferente sobre a substância dos fatos, antigos mas ainda solenes, do Trezentos local, e a tomar partido diante das enormes novidades de Brunelleschi, Masaccio, Fra Angelico e Domenico Veneziano”.

Nesse período, apesar de a maior ideia artística do Renascimento, a perspectiva, ter sido invenção do arquiteto Brunelleschi, os pintores seguiam obrigados a acomodar suas figurações entre os vãos, os espaços menos favoráveis. Isso ainda ocorria com Piero por volta de 1452, durante os seus trabalhos na igreja de São Francisco em Arezzo. O problema de ajustar as imagens ao predomínio vertical do gótico acarretava consequências — mas, apesar desse e de outros constrangimentos históricos, Piero conseguiu desenvolver aquela que foi sua “inclinação fundamental”: representar o mundo como “eterno espetáculo em ação”.

O “mundo de Piero se desdobra claro como um tecido colorido envolto por uma fatalidade calma e indiferente”, é o que diz Longhi, e só podemos constatar essa evidência. Mais adiante, ressalta: “as cores parecem nascer pela primeira vez como elementos de uma invenção do mundo”.

As cores “são superfícies medidas e extensas de uma natureza completa que vai se manifestando desde as profundezas sob a luz natural. Essa conjunção deliberada ocorre graças a uma ‘síntese perspectiva’ que, primeiramente, coloca um conjunto selecionado de formas simples em terceira dimensão e, depois, recoloca-as no plano bidimensional como ‘perspectiva cromática’: tal é, precisamente, o segredo da poética de Piero desenvolvida a partir da reflexão, também tendo em vista a forma humana, sobre as mesmas leis que Brunelleschi havia extraído da mensuração dos edifícios antigos”. E, um pouco mais além, Longhi destaca: “É como se Piero previsse e realizasse plenamente o lema, então distante, de Cézanne: ‘quand la couleur est à sa richesse, la forme est à sa plenitude’.”

Sobre os afrescos aretinos, minuciosamente analisados, o crítico assinala: “Nenhum posicionamento espacial ali é gratuito”. Seus comentários atingem momentos entusiasmados, quando o(a) leitor(a) encontra a potência de sua tradutibilidade da imagem em palavras. Vejamos por exemplo esta passagem, que descreve a cena do Encontro da rainha de Sabá com o rei Salomão: “No trecho da rainha ajoelhada diante da pontezinha do Siloés, as damas formam como que uma abside à sua volta: encerradas na avalancha dos mantos, luminosos como geleiras ao sol, rosados, verdes, brancos, elas desenvolvem o espaço predeterminado com o círculo dos cintos, com os gestos de um inconsciente ritual, com a calma elegância das nucas majestosas, com as frontes desabrochadas como bulbos gigantescos sobre o fundo cinza das colinas”.

A grande marca deste livro é, na verdade, a paixão que extravasa da linguagem crítica. Longhi deixa-se arrebatar — seja descrevendo as mulheres com suas “túnicas de cauda marcadas pelo cinto, para conferir uma majestosa elegância de ânforas antigas, coroadas pelas cabeças de terra suave e luminosa”, seja concentrando-se na cor crepuscular do Sonho de Constantino, onde assinala: “Aqui, a absoluta novidade é a maneira como Piero transpõe o milagre para a natureza, como se dissesse: o que há de mais milagroso do que uma lua cheia numa noite serena da Úmbria?” Isso não reduz seu rigor de análise, ao contrário do que podem pensar os acadêmicos empedernidos. Saímos da leitura percebendo com clareza os laços que a história vai construir, assimilando em parentesco Piero della Francesca, Van Eyck, Rafael, Caravaggio, Rembrandt e até mesmo Seurat.

Ao final do estudo de Longhi, aprendemos como um artista (não só Piero) torna-se perfeito. A trajetória envolve o respeitoso manejo de influências, a percepção arguta de sua própria época e o salto — que, muito mais que impecável, é visionário — para uma tendência pioneira. A partir daí, trata-se de exercitar inúmeras possibilidades dentro dessa descoberta.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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