Umberto Eco e a tradução como negociação

Umberto Eco não é nenhum novato nas lides da tradução. Traduziu, foi traduzido, refletiu e escreveu sobre tradução
Umberto Eco, autor de “O nome da rosa”
01/06/2010

Umberto Eco não é nenhum novato nas lides da tradução. Traduziu, foi traduzido, refletiu e escreveu sobre tradução. Dire presque la même chose – expériences de traduction (Grasset, Paris, 2006) poderia representar, de algum modo, a compilação — ou pelo menos o resumo, naquele ano de 2003 — do pensamento de Eco sobre a tradução. Ou assim nos faz pensar sua tradutora do italiano para o francês, Myriem Bouzaher.

O título não diz tudo, mas muito sugere. Não deixa de conter apreciação positiva sobre o ofício. Quase não é pouco. Mais um triz, e está tudo ali. Mas também sugere o velho estigma que paira sobre todo processo tradutório: a impossibilidade de dizer tudo.

Eco disse quase tudo. Não teorizou tanto. Deliberadamente priorizou a prática e a experiência, especialmente a pessoal. Falou de suas traduções e de traduções de obras suas e de outros. Recheou o livro de exemplos, em diversas línguas. Extrapolou a tradução meramente lingüística, para navegar em águas intersemióticas.

Estendeu, ao longo da obra, um fio condutor calcado num conceito simples e direto: negociação. Tradução como negociação, em vários níveis e entre vários atores: o autor, seu texto original, as culturas de saída e chegada, os leitores prováveis, as editoras — além, claro, do próprio tradutor. É nesse conjunto de elementos que o tradutor deverá exercer suas habilidades de negociador.

Há muito a negociar. Negocia-se, por exemplo, uma estratégia de tradução (influenciada, possivelmente, pelo autor, pela editora, pelos leitores potenciais ou almejados). Negocia-se a noção de fidelidade que se pretende, ou que se julga mais adequada à situação. Negocia-se até o tamanho do texto. Já não fosse muito, há ainda a negociação no varejo: aquela que se dá frase a frase, palavra a palavra. Escuta daqui, afere de lá — e bate-se o martelo. Manda-se o texto à editora. Que o publica: negócio fechado.

Eco enfatiza o efeito que se quer provocar. Para o autor italiano, eis aí talvez um dos principais guias da noção de fidelidade (ou “reversibilidade”). Aceita, e mesmo estimula, a alteração do texto — inclusive de textos seus — desde que se tencione acender no autor a mesma sensação estética, a mesma emoção, quem sabe a mesma surpresa. Aceita a deformação da superfície do texto em proveito de seu significado profundo — de seu núcleo expressivo, o sentido que se quer transferir.

Eco não simplifica: em rodeios de erudição, instiga o leitor — e especialmente o tradutor — a buscar a interpretação mais bela (na expressão artística) e mais eficaz (na aferição do efeito que se transmite pelo texto). Faz a interpretação preceder a tradução, rejeitando a sobreposição dos dois conceitos. Interpretação como elemento indissociável da tradução, mas a esta anterior. Para traduzir é preciso ir além — após a identificação do sentido, vem o trabalhoso artesanato textual.

Incita à criação na tradução, pois o resgate do efeito literário vale a mudança da referência, contanto que se preserve o núcleo expressivo. A referência pode — ou mesmo deve — variar de língua a língua, de cultura a cultura, de época a época. Mas a fábula interna do texto deve ser mantida.

Para dizer no mínimo quase a mesma coisa é preciso aliar paixão e trabalho. Eco não prega a tradução literal — pode-se discordar, sempre. Prega fidelidade como busca — por meio de negociações sucessivas — do sentido com que se quer arrebatar o leitor. Rejeita a fidelidade como exatidão. Encerra o livro dizendo, justamente, que em italiano os dicionários não incluem tal conceito no verbete “fidelidade” — mas sim termos como lealdade, honestidade, respeito. Em português brasileiro, vá lá, a coisa é um pouco diferente. Mas quase a mesma coisa.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho