Sobre uma antiga tradução de Petrônio

"Satyricon", de Petrônio, é certamente uma aventura tradutória, que muitos já afrontaram
01/10/2010

Satyricon, de Petrônio, é certamente uma aventura tradutória, que muitos já afrontaram. Em muitas épocas, lugares e línguas. Inclusive, claro, no Brasil, em mais de uma época. A obra latina oferece todos os grandes desafios que um tradutor pode temer ou desejar: enorme distância geográfica, temporal e cultural; mescla de prosa e poesia; e, como o próprio nome indica, a presença contínua do elemento irônico.

Satyricon é uma obra vasta, resistente, contundente — e só por isso atravessou os séculos. Vasta não pelo tamanho, mas pela quantidade de textos que gerou e continua gerando. Sobreviveu, mesmo mutilada, às calamidades do tempo, quando muitos de seus coetâneos tomaram o desvio do olvido.

Não conheço todas as traduções de Satyricon para o português brasileiro. Também não conheço o texto latino original. Li apenas a tradução de Paulo Leminski (Brasiliense, 1985). Há outras, mais antigas e mais recentes. Como todas as obras de Leminski, trata-se de tradução com traço autoral forte. A estratégia tradutória é explicitada de maneira franca: devolver um vivo aos vivos. Contorna o erudito versado em cultura greco-latina e busca, diretamente, o leitor contemporâneo.

O tradutor arrisca muito. Ninguém devolve um vivo aos vivos imaculadamente. Um pouco de sangue há de jorrar — do original, do autor, do tradutor. A tradução é um compromisso, sempre um compromisso, no qual há que ceder muito em troca de algo incerto. Eis o compromisso: preferiu, o tradutor, trair os dois — tanto o autor como o vivo leitor — a trair apenas um deles. Cada qual recebeu sua dose de aleivosia, ministrada com cuidado, requinte e paixão.

Que a tradução pareceu fruto de um projeto. Não foi texto qualquer encomendado a qualquer. Houve cuidado e planejamento. Estudo e pesquisa, como convém. Carinho para com o leitor, que, quando lhe falta a cultura, se sente amparado nas notas de rodapé. Que, aliás, não só explicam o texto, justificam escolhas, mas comentam e, até, servem de veículo para opiniões insólitas do tradutor — o tradutor como eterno intrometido, intrometendo-se na pele do texto.

O texto escorre solto, embalado por doses cavalares de sexo, sátira e vinho, com linguagem ora coloquial, ora vulgar, ora elevada. Muda-se rápido de registro. A leitura flui leve, animada pela licença que se concede o tradutor e pela desbragada destemperança dos protagonistas.

A tradução, com sua ligeireza, agudizou a atualidade do texto — que parece não deixar nunca de ser atual, talvez por tratar de temas tão caros à humanidade de todas as épocas. Se a religião degenera em rito vazio, rapinagem e superstição, se os novos ricos perseguem sua sina de ostentação e superficialidade, permanece vivo, vivíssimo, o cerne da vida: o amor, o vinho e o mais alegre e por vezes ingênuo desatino — personificado, este, no trio de anti-heróis.

A tradução, com seu fio aguçado, tornou o texto mais leve. E também mais curto. O leitor, mesmo ainda na década de 80, antes portanto da internet, já resistia aos textos longos. Mas tudo tem remédio, e muita coisa se pode resolver na tradução. Leminski poupou o leitor, em mais de uma oportunidade, de encarar longos e, segundo o tradutor, tediosos poemas petrônicos. Um vivo aos vivos. Tampouco Encolpo suportava os versos empolados de Eumolpo. Já carregava os ouvidos cansados, como hoje o leitor tem os olhos pregados de tanto o que há para ver e ler. Não tardou por esperar o poeta chato, e mais ainda chato quanto mais rico. Sofreu fim de poeta: do alto de um rochedo, o atiravam no mar — onde até morrer é doce.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho