Imaginemos um exercício simples de tradução. Peguemos um texto qualquer. De ficção, por exemplo. De preferência, boa literatura. Arrumemos um tradutor. Por exemplo, o próprio autor do texto. Mãos à obra. O próprio autor fará a tradução. Como, por exemplo, o fez Samuel Beckett quando traduziu seu Malone Meurt do francês para o inglês.
O primeiro passo parece fácil. O próprio autor se traduz para outra língua, que, suponhamos, conheça bem. Haverá tentações, claro, que sempre estão à espreita. Vai tentar arrumar algum trecho que, agora pensa, não lhe saiu bem no texto original. Talvez algum problema intrínseco da língua de saída, que não lhe tenha permitido expressar-se como queria, como agora o pode nessa outra nova língua — todo um mundo novo que se abre de possibilidades, de novas invenções. De tentações, enfim. Que a tradução navega nesse rio revolto — corredeira — espremida entre a rocha dura da fidelidade, de um lado, e, de outro, a areia fofa e movediça da liberdade. É duro escolher, não é fácil resistir.
Mas o autor persevera, evita maiores tentações, refreia a tendência ao desvio, doma o desvario da invenção. Traduz, enfim, corretamente, para si e para seus (cada vez mais) parcos leitores, que hoje sobra sempre menos tempo para ler livros (pois temos já demasiado que ler).
Agora, o segundo passo. Digamos, um ano, ou dois, depois do primeiro. O mesmo autor, já recuperado do fatigante exercício que o fez percorrer as próprias idéias com a língua do outro — que talvez também seja de alguma maneira sua, pois podemos imaginá-lo bilíngüe —, empreende agora, acometido de temporária loucura, o caminho inverso. Traduz sua própria tradução para a língua do original. Retraduz, enfim, seu texto original, criando dele uma terceira e nova versão.
Lá se vão alguns anos já desde a conclusão da obra original. Digamos, uns três ou quatro anos. Não vale reler o texto primeiro. Faz parte do exercício recorrer apenas à tradução. Nesse jogo, a memória já não alcança as palavras originais. Na lembrança, as cenas — pelo menos as mais marcantes e medulares do livro — ainda aparecem vivas, mas muda a forma de narrá-las. Muda algo do ambiente — a mobília que se desloca, o humor de um personagem que se altera, neblina que baixa sobre a cidade ensolarada. Alguns novos efeitos que se descortinam, óbvios — por que é que eu não pensei nisso antes?
É preciso depender apenas da tradução. De uma mirada panorâmica, a nova tradução — agora de volta à língua original — é o mesmo livro. Em linhas gerais, o enredo permanece, não se perde o fio da meada. Na ótica micro do texto — sob lupa crítica — surge um livro diferente, corrompido pelas lacunas da memória e por surtos incontroláveis de invenção literária. Não consegue, o pobre, se segurar diante de uma nova idéia, de um novo fraseado que lhe parece cair ali naquele trecho como uma luva — de qualquer maneira, não está bem certo se não era assim mesmo no “original”, que a idéia lhe parece absolutamente intuitiva (impossível não lhe ter ocorrido antes, exatamente daquela forma).
Mas a forma, justo ela, não será exatamente igual. As peças não se encaixam mais de maneira perfeita, talvez pelo tempo durante o qual ficaram guardadas. Os pontos de encaixe, as reentrâncias, já não se ajustam tão bem. Há imperfeições nos entalhes, as ranhuras entre as palavras — e entre as idéias — parecem haver assumido traços, arestas, curvas ligeiramente diferentes. Diferentes o suficiente para produzir um texto novo.