Quando a tradução torna ao original

Foram tantas as surpresas, tantas as dúvidas, que decidiu pedir que um tradutor profissional fizesse trabalho paralelo
01/09/2013

Certa feita, o autor encomendou a tradução do original para língua estrangeira. Queria preservá-lo da natural corrupção do tempo, dar-lhe vida nova, perspectivas de sobrevida. Depois de muitos anos, quis fazer o caminho inverso. Como experiência, nada mais. Ainda tinha à mão — mas não na memória — o original em sua própria língua. Crendo ser o melhor tradutor de si mesmo — aposta sempre arriscada — decidiu empreender ele próprio a tradução.

Foram tantas as surpresas, tantas as dúvidas que lhe surgiram, que decidiu pedir que um tradutor profissional fizesse trabalho paralelo. Ao final, havia três originais: aquele que ele mesmo havia escrito anos antes, sua própria tradução e o texto vertido pelo tradutor profissional. Todos relativamente parecidos, mas relativamente diferentes. Nuanças, detalhes, às vezes. Outras vezes, diferenças significativas que pareciam indicar rumos novos à própria narrativa. Novos rumos que até podiam virar promessas descumpridas, mas que acendiam no leitor — especialmente no próprio autor que se relia — expectativas interessantes. Logo esquecidas, mas também disso vive a literatura.

Qual o mais fiel? Naturalmente, o original intraduzido. Fiel na aparência pelo menos, pois, na leitura em tempos diferentes, por sujeitos diferentes, até mesmo dois textos idênticos geram interpretações diversas. Mas e o segundo mais fiel? Em princípio, a tradução do próprio autor. Mas o seria na prática? E se o tradutor profissional fosse realmente competente e houvesse realizado trabalho exemplar? E se a memória do autor já o viesse traindo regularmente — pregando-lhe peça atrás de peça — e não fosse capaz de assegurar-lhe a recuperação de todo sentido original? Não seria muito desatino o supor.

Para o tradutor profissional, o original poderia parecer-lhe terra ignota. Terreno fértil para recriações. Espaços desconhecidos, que, claro, lhe sinalizavam mais amplidão. O autor talvez não percebesse ali tanto espaço, premido que estava pela responsabilidade de traduzir-se e, de certa forma, assombrado pelo fantasma daquele que fora anos antes.

Ao autor o texto lhe parecia diluir-se na memória. Rarefeito ficava. Faltavam esteios que — tenta lembrar — na época em que escrevera o original se viam tão sólidos. O passado volta com lacunas, como o próprio texto que — refletia com certa nostalgia — antes lhe parecia tão seu.

O tradutor profissional via o texto com olhos ainda frescos. Sentia o prazer do descobrimento e via abrirem-se em sua mente todo um leque instigante de possibilidades.

Para o autor — assim lhe parecia — o texto parecia fechar-se diante de seus olhos. Certo temor do esquecimento, de não estar mais à altura de si mesmo, de sentir sua tradução menor que o original. Havia a tentação, sim, de abrir o original, mas quis resistir até o fim. Resistiu.

A comparação não ficaria a seu cargo. Nem poderia. Teria que haver um terceiro que pudesse julgar os três textos. Pensou, primeiro, em indicar qual o original — o verdadeiro original. Mas recuou. Melhor seria apresentar os três em pé de igualdade e pedir uma opinião. Qual seria o melhor, o mais bem construído — aquele que representaria a verdadeira matriz? Desistiu.

Por que correr o risco de uma humilhação? E se o texto do tradutor profissional fosse o escolhido? Tradução de tradução, horror! Nenhuma delas tinha seu traço, sua tinta, seu sangue. Se sua própria tradução fosse a indicada — pensou, inicialmente — não seria tão mal: sinal de que operara com maestria a tradução e até conseguira, quem sabe, melhorar certos aspectos do texto. Depois, repensando, notou que sua tradução fora mediada por texto terceiro — de outras mãos, que fizeram a tradução para a língua estrangeira. Dividir louros? Correr o risco, para quê?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho