Instabilidade e mediação entre rivais: tradução

A instabilidade do original é a verdadeira causa da incontrolável proliferação de diferentes traduções
01/09/2012

A instabilidade do original é a verdadeira causa da incontrolável proliferação de diferentes traduções. Tantas quanto tradutores há. Como cambiasse a cada tradução, a cada leitura, o texto mutante e incontido se derrama — na mente do leitor — em teia de sulcos nervosos e irrepetíveis. Esparrama-se em viagem sem volta, sem esperança de remontar às origens. Não havendo estabilidade, a tradução surge como tábua de salvação do texto.

Essa mesma instabilidade — que, claro, também se estende à própria tradução — cria, em torno de cada original, gama de rivais capaz de armar clima insustentável de concorrência. Ardente fogueira de vaidades. Como decidir pelo melhor ou determinar o ponto de partida?

O verniz de opaca permanência transluz fragilidade. Poucos pontos fixos. Muitos espaços a cobrir. O maior de todos: a pródiga, desbragada brecha entre significante e significado. Espaço de tanta polêmica, impulso de tanta criatividade. Lugar a explorar. O lugar mesmo da instabilidade — sempre o passo em falso à espreita, o erro a cada genial descoberta.

Como rivalizar com o original? Matando-o, talvez, sepultando-o no mais profundo escaninho do esquecimento. Ato quiçá inconsciente: matar o autor para assumir seu lugar. Quantas vezes já não se cometeu o mesmo crime? Postular-se como única cópia — remanescente — e alcançar o apogeu lábil do texto: original.

Certa estabilidade se supõe, sempre. As necessárias balizas sem as quais nenhuma tradução é possível. Mas além disso, quê? Ação sem referência rija, sem metro que a meça com segurança. Estrada curta que termina em praia de mar imenso sem caminhos. Ou o mar mesmo é um só caminho, longo, sem raias tão visíveis: metáfora da perdição do tradutor.

Rivalizar com o original — aspiração de toda boa tradução. Mais que isso, só suplantá-lo, mesmo que o finado, teimoso, ainda viva. Melhor que o pai, o novo original se impõe como modelo de outras traduções.

Impreciso como boa ficção, instável acima de tudo, o texto se amolda fácil às mãos do tradutor hábil. Massa de modelar macia, plástica, o texto atesta o fado de toda palavra escrita: dissipação e decrepitude, nesta ordem. Arrisco que nem mesmo todo o avanço da capacidade computacional poderá salvar o texto de sua sina de instabilidade. Basta deixar passar o tempo. O progresso e o acelerado processo de soterrar o passado cumprirão seu papel. Vermes. Montes sobre montes de ruínas — quem viverá para escavá-los? Escombros, eis o que restará do texto. Nada que é lido hoje, como está hoje, poderá mesmo perdurar.

A proliferação das traduções equivale à multiplicação de textos rivais. Certo, o grande rival é mesmo o original: alvo a ser abatido. Mas não menos feroz poderá ser o embate entre traduções diferentes, em especial quando contemporâneas. O valor do detalhe exacerbado num terreno — arte e ficção — em que cada detalhe é inestimável. Só que o tempo vai arrastando as rivalidades — desgastando as arestas até que nada se entenda numa platitude que nem sentido faz mais.

Não parece haver maneira de deter o pesado escorregar do texto para o terreno da instabilidade. Terreno sísmico por excelência, o texto treme, se abala, a cada leitura, deslocando significados, descolando sentidos da superfície para remontá-los adiante, desordenadamente ou sob nova ordem.

A lógica da eliminação do rival preside ao ato tradutório — como também à mera e inocente leitura. Eliminar para dele se apropriar. Dele, do texto. Processo inconsciente que transforma a página preenchida de palavras em campo de batalha. Ali, a mesma velha sentença contra a rival: a minha é a melhor leitura.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho