Traduzir dá sensação de poder diante do texto alheio. Traduzir é dispor do texto, para certo fim, este determinado pelos interesses do público alvo, dos editores e, claro, do próprio tradutor. Traduzir é dispor, no sentido de transformar o original a sua maneira, fazê-lo a sua imagem. De uma maneira que nenhum outro tradutor faria. Cada texto traduzido leva marca indelével de seu tradutor, lado a lado com outra marca identificável, do autor.
Poder que, como qualquer outro, se deve exercer com moderação e inteligência. Dispor de maneira responsável — que dá o sentido de “fidelidade” do tradutor diante do texto e do autor. Este, vivo ou há tempos desaparecido, assombra o texto como espectro inesconjurável. Impossível afastá-lo, como para encontrar tempo para ficar a sós com o texto e melhor entendê-lo. O barulho ensurdecedor de tantas solicitações e tantas vozes misturadas. Há que conviver com dois ao traduzir: texto e autor miscigenados no preto e branco do papel.
Ainda assim, há poder ali — no ato de traduzir. Dispor para recompô-lo e apresentá-lo de modo palatável ao novo leitor. Tarefa fácil nunca há de ser. A inspiração está toda ali — toda uma teia de sugestões que, compreendida, está à disposição do tradutor criativo. Remontar peça a peça todo um novo texto — novo diante do original, este ascendente do traduzido.
Dispor é não apenas recompor algo que se apresenta disperso em língua alheia. Toda ordem ali é só aparente, que mera tradução literal não será capaz de recuperar. Quebra-cabeça sem guia nem modelo, que nunca se sabe com toda a certeza se foi de fato bem ou mal montado. Talvez algumas arestas como guia, mas todo o miolo resta como enigma a decifrar, com poucas linhas de segurança. Toda certeza ali é enganosa, a tradução que se apresenta fácil pode desorientar e produzir desestruturação do texto dezenas de página adiante.
Dispor é desconfiar também do fácil e de sua própria capacidade para acertar. Algo assim como confiar em certo instinto e inspiração, mas sempre os colocar à prova — prova de coerência e correta estruturação. O texto traduzido, como outro qualquer, tem de estar bem montado. Mesmo que o original não o esteja assim tão bem. Às vezes se exige do tradutor tarefa dupla — traduzir com boa estruturação texto que, em si mesmo, apresenta falhas de consistência interna. Que fazer? Azar do tradutor, que por isso não será remunerado nem lhe será reconhecido feito adicional.
Empecilhos espalhados no texto, adrede ou não, são problemas do tradutor. Deles há muitos. Por obra e talento ou falta do autor. Tanto faz. Faz parte da tarefa do tradutor, que paga caro pelo excesso de inspiração que lhe é oferecido. Nem todo escritor recebe assim doses tão fartas de inspiração, sempre a sua disposição.
Com tudo isso sempre e tanto à disposição, e com toda uma cobrança de fidelidade — e a culpa que se lhe associa naturalmente —, traduzir é tarefa que não poderia deixar de despertar a mais profunda desconfiança. Todos os vícios a acometem: preguiça intelectual, incompetência lingüística ou cultural e, mais que tudo, a soberba. Este sim vício maior a desfigurar o sentido original e tão caro do termo “dispor” — que implica responsabilidade e organização — para transformá-lo em efígie do poder exercido de forma autoritária e caótica. Que gera texto caótico, ao mesmo tempo pobre e pouco inteligível.
Dispor de tempo para dispor do texto de forma inteligente: tornar o original inteligível em outro língua, em outro tempo. Tempo que geralmente não sobra, mas que o tradutor precisa mais do que nunca, nesses tempos de aceleração cada vez maior dos fluxos de informação. Traduza com um barulho desses aqui dentro e lá fora.