Como traduzir Trevisan para o francês

Traduzir é selecionar. Escolher, dentre as múltiplas interpretações de um texto
01/11/2010

Traduzir é selecionar. Escolher, dentre as múltiplas interpretações de um texto, aquela que mais terá chances de satisfazer (o leitor, o editor, o crítico, o próprio tradutor). Tradução de Dalton Trevisan para o francês começou com uma escolha importante, dentre duas alternativas: traduzir um livro, do começo ao fim, ou fazer uma espécie de pout-pourri, pinçando textos soltos de alguns livros. Esta última opção pareceria natural para a obra de Trevisan, constituída praticamente apenas de contos.

Pode-se alegar que cada livro do Vampiro de Curitiba é um conjunto em si mesmo, indivisível e imiscível com textos de outras obras, mesmo que do mesmo autor (discordariam os fazedores de antologias, que nos fazem tão mais inteligentes). Cada livro teria uma espécie de alma ou fio invisível, cosendo e mantendo coesos os vários contos. Sua disposição também não seria por acaso, mas definida com capricho de cinzel. Tudo no seu lugar. Até mesmo seu único romance não seria de fato romance, mas justaposição esmerada de uma série de contos — variações sobre o mesmo tema.

Seja como for, a Éditions A.-M Métailié optou pela antologia para levar Trevisan ao público francês. Integrante da Bibliothèque Brésilienne, Le Vampire de Curitiba (Paris, 1985) não é, como se poderia pensar (e como eu mesmo pensei), tradução de O Vampiro de Curitiba. Trata-se de uma seleção — não se explicita quem a fez nem com que critérios — traduzida pela dupla Geneviève Leibrich e Nicole Biros. São contos tirados de oito livros do autor.

Falta, talvez, unidade e uma linha de coerência — natural em antologias que abarcam longos períodos de tempo. Mas a tradução flui, leitura leve. Falta-lhe, talvez, um traço de concisão que tanto caracteriza Trevisan. Traço não apenas do autor, mas também da língua.

O português é sintético. Tradutor de Machado de Assis para o inglês, Robert Scott-Buccleuch — ele mesmo, aliás, dado às artes da seleção — assinalava, em sua introdução a Dom Casmurro (Penguin Books, 1992), a dificuldade de traduzir do português (“uma das línguas européias mais sintéticas”) para o inglês (“talvez a mais analítica”). Esse duplo laconismo, no texto em português de Trevisan, tende a forçar o tradutor a encher as lacunas — terreno próprio da sugestão e, por que não, da literatura — com paráfrases e prolongamentos. Difícil traduzir as lacunas de um texto, ou de posicionar, na tradução, as lacunas nas mesmas posições em que se encontram no texto original. Não sei se a tradução tenderia, nesse caso, a tornar o texto menos literário, mas certamente o deixa menos sugestivo — pelas lacunas que preenche: pás de terra sobre fonte de inspiração.

Rouba-se do leitor aquela irritação de ter de reler o texto para saber quem fala o quê naquele longo diálogo. Palavras demais — parece que é da mecânica do francês. Ou será falta de amor ao cinzel? Traduzir é fácil, difícil é criar um estilo. Tão difícil será emular o estilo do original na língua de chegada. Como traduzir um duplo laconismo? O francês — língua de contrações fonéticas — é também idioma de sintaxe rígida e por vezes prolixa. Exige mais palavras, mais precisão, enquanto o português permite a distensão da brevidade. Brevidade que é característica dos gênios, posto que implica primor: menos vale mais.

— Atirou no pai, no chefe, no rei. Não é mais ninguém = Il était père, chef, roi. Tu as tiré sur lui. Maintenant il n’est plus rien.

Quem falou? Onde os pronomes no original? Quem mesmo não é mais ninguém?

Deus acuda o tradutor, o livre de todo laconismo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho