Como captar toda a vibração do original

Na tradução, é preciso captar tudo o que vibra no texto. Calibrar a colagem dessa vibração no novo texto, para não retirar dele o que o faz atraente, literário, único
25/05/2015

Na tradução, é preciso captar tudo o que vibra no texto. Calibrar a colagem dessa vibração no novo texto, para não retirar dele o que o faz atraente, literário, único. Não espremer as saliências do relevo. Não pasteurizar, acima de tudo. Nem transigir com interesses meramente comerciais — como parece ocorrer em algum número de editoras (mas isso talvez supere a esfera de competência do tradutor).

Na tradução, deixar surgir o presságio de saudade: a falta que faz o texto original, a língua do original, em sua nova roupagem. É preciso deixar aflorar essa saudade para materializar, em novo texto, a mesma vibração que vivificou o autor e sua criação. Respeitar o lugar da falta para, nele, criar texto similar.

Espicaçar a curiosidade do leitor, mantendo o brilho que fez a vertigem e a alegria da leitura. Não se contentar com o texto lascado, roto, fragmentado, como que montado às pressas com sentidos pobres sobre a estrutura original. Não buscar apenas certo consenso entre o que pareceria natural ao leitor e, ao tradutor, mais confortável. Evitar, sobretudo, o conforto e a complacência.

Não negar ao tradutor, principalmente, o gosto pela composição do novo texto: a liberdade de usar todas as palavras que sempre quis escrever, todas as palavras que ainda lhe faltava usar. Afinal, cabe ao tradutor — como leitor privilegiado que é — escolher uma rota entre tantas, na farta ramificação das possibilidades semânticas. Entra, claro, nessa escolha, a delicada e complexa eleição vocabular.

Também cabe ao tradutor, na busca de persistente vibração, mobilizar todos os recursos que a língua-alvo lhe oferece. Cabe fazer o texto escorrer solto pela página — a naturalidade tão desejada —, como que cobrindo o original, preenchendo todas as suas reentrâncias com novas sugestões, novos significados.

Saber enxergar o original por ótica múltipla e fazer escorrer pela página novo texto irisado, onde cabem não apenas todo o colorido do original, mas também a exuberância de matizes oferecidos pela língua-alvo. Deixar a inspiração — necessária, sim, na tradução — escorrer sobre o papel. Cobrar, assim, a comparência de todos os sentidos possíveis. Difícil, sem dúvida, o que só faz aumentar a responsabilidade do tradutor e a altura da tarefa de traduzir.

Sentir a vibração dos sentidos ondulantes. Não tolher o natural ondeamento dos significados e das percepções dos significados. Aceitá-los, de alguma maneira, para capturá-los e reproduzi-los. Dar-lhes o viso de realidade e naturalidade, para que o texto traduzido seja aceito como novo original.

Pescar nos refolhos do texto aquilo que só o leitor mais atento distinguiria. Muito se exige do tradutor, e não há como reduzir esse ofício ao do copista. É preciso muito mais que disciplina e atenção. Há que ir além, mergulhar nas ondulações do texto, nas ondulações provocadas tanto pela passagem do tempo quanto pelo deslocamento geográfico e cultural. Facilitar esse processo seria destruir a tradução como tal. Os sentidos não estão soldados no texto do original, não há como vê-los dessa forma. Seria muito mais simples se assim fosse, dispensando toda a reflexão que se elabora sobre esse ofício-arte.

Resta tomar o esqueleto do original e preencher os tantos vazios que se formam na áspera passagem à nova língua. Dar-lhe carne e sangue, sentido e vibração. “Não se lembra? O texto era um esqueleto carente de carnes que lhe dessem sentido”. Até o surgimento do tradutor e de sua tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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