Em seu Diário de Florença, o poeta Rainer Maria Rilke fala sobre o “livro amigo”, aquele que lemos sempre, que sempre está à mão, espécie de livro de cabeceira. Aponta que o leitor, ao desenvolver tamanha intimidade com esse “livro amigo”, passa a apropriar-se do texto. Tanto que deixa de perceber a linguagem do livro como idioma tal ou qual e passa a concebê-la como espécie de vernáculo próprio.
Não só o livro e seu texto mas sua língua deixam de ser do autor, de um tempo e lugar específicos, e transitam paulatinamente à esfera de seu leitor contumaz.
Na tradução, que também seja assim. A lenta apropriação do original pelo tradutor, que o transcreve, com texto seu, para gerações atuais e futuras. Esse é o processo que se busca. Não a leitura mecanizada, que gera tradução mecanizada; mas a absorção do texto, que gera nova produção criativa.
Na tradução, que seja também assim. A manipulação do original, como texto já absorvido e apropriado. O original tido como obra criadora calcada também na manipulação de textos anteriores. Na sequência histórica de textos não há completos inocentes de plágio.
O “livro amigo” está sempre à mão; mais que isso, insinua-se na mente. Tanto se insinua que o tradutor chega a perceber as fraturas do discurso original, por onde escorrem sentidos imprevistos.
A intimidade produz percepção mais nítida de contornos e significados. Eis aí uma diferença flagrante entre o leitor transeunte e o tradutor atento. Este consegue identificar as proporções do discurso do original; e, em perspectiva, reproduzir essas mesmas proporções na tradução.
A apropriação do “livro amigo” também abre espaço para um bom uso do intervalo que se estende da leitura à escritura. Intervalo que permite a apreensão do original como texto translúcido, que deixa penetrar o olhar em suas camadas mais profundas.
Esse processo permite ao tradutor intensificar o elemento de realidade — uma realidade estudada e apreendida — em seu novo texto. Lhe permite acrescentar à escritura novo e importante condimento. Lhe faculta eludir a teimosa persistência de significados arrevesados, que se repetem mecânica e impensadamente.
O “livro amigo” significa, ainda, a consecução de novos descortinamentos, que só se podem alcançar por meio da leitura quase obsessiva. É algo que dá autoridade ao tradutor, algo que em si produz significado.
A leitura atenta e continuada traz esse efeito positivo, de embeber o tradutor do texto. É a partir desse momento que o tradutor “enxerga” o texto traduzido: forma-o já na sua mente, antes mesmo de redigi-lo. Toca o nervo do original, de seus sentidos mais profundos. Passa a ver a escritura com outra configuração mental, que lhe garante nível de interpretação mais sobranceiro. Passa a ver através da ambiguidade a substância real — característica de uma mente vigorosa.
É uma forma de alimentar o subconsciente e, após prudente intervalo, sentir que o novo texto gradualmente escoa de lá, mesmo a desoras. Sentir que volta transformado, compreendido, maleável, submisso. É uma forma de desarmar as tantas tramas em que se enleiam suas interpretações.
Para que o tradutor possa lavrar no texto o fio ora tenso ora frouxo do sentido.