A doce ilusão da teoria do encaixe das línguas

No fio da navalha entre duas línguas mora todo um terreno fértil para ações e especulações o mais atinadas, ou o mais disparatadas
01/01/2008

No fio da navalha entre duas línguas mora todo um terreno fértil para ações e especulações o mais atinadas, ou o mais disparatadas. Um bom disparate seria, talvez, aplicar à prática da tradução uma espécie de “teoria do encaixe das línguas”, que muito bem poderia ter sido (ou vir a ser) proposta por algum exímio lingüista romeno. Rezaria a teoria que há pares de línguas que, por sua estrutura sintática e variedade lexical, têm contornos mais ajustados ao encaixe — ou seja, à interação interlingüística.

Um dos aspectos mais importantes da interação interlingüística, claro, é a tradução — caso em que o ator (ou autor, tradutor) interveniente medeia o sentido entre duas línguas e trata de decidir qual delas, língua, ou qual deles, sentido, prevalece. Duas línguas com bom encaixe facilitariam essa interação, aplainando a faina do tradutor. Um bom exemplo seria, quiçá, a dupla português-espanhol, a despeito dos muitos falsos amigos.

O encaixe entre o português e o espanhol é às vezes impressionantemente perfeito. Podem-se traduzir linhas e linhas com máximo apego à letra, numa tradução rápida e rasante que provoca inveja no pobre proletário que luta com a passagem do chinês ao alemão.

O bom encaixe se caracteriza não apenas pela proximidade dos dois acervos lexicais, mas, principalmente, pela afinidade das estruturas sintáticas. Mais que a busca por palavras, lapidar estrutura aceitável no texto traduzido é muitas vezes tarefa esgotante. Porque a estrutura do original sempre se insinua, por mais que se queira evitar, na pena do tradutor. É como saísse misturada à tinta, ou aos minúsculos pontos de luz que na tela emulam a tinta.

Independentemente, porém, do encaixe natural que tenham duas línguas para efeitos de tradução, nada substitui a perícia e a sensibilidade do interventor (o tradutor) na tarefa de esculpir, com cinzel e tinta, o necessário encaixe forçado. Aquele que é produzido às vezes com esmero, ou, na insuficiência desse, na marra, e mesmo com alguma sutil violência.

Traduzir também é torcer, e muitas vezes o bom encaixe depende de rigorosa cinzelagem, bem ali nas bordas da língua. Burilar arestas difíceis, encobrir assincronias, reduzir assimetrias. As línguas têm entre si diferenças em suas capacidades de exprimir idéias. É fato fartamente estudado por teóricos da tradução. O tradutor tem de reconhecer essas diferenças e trabalhar no limite das aptidões da língua-alvo. Se preciso, inclusive, extrapolar limites e abrir novos caminhos, criar novas capacidades — o que de fato não raro se faz, até por necessidade, e mesmo sob póstumo fogo cerrado dos puristas.

O tradutor atua em zona de fronteira, e, como toda fronteira, os limites entre línguas são prenhes de tensão e confusão. Sentidos às vezes se borram e se alteram nessa zona de transição, de forma tal que o interventor é induzido a erro, mesmo imbuído das melhores das intenções. Especialmente se o encaixe é muito fácil — e podemos voltar ao caso da dupla português-espanhol —, o risco de torcer sentidos é permanente. Alterações de sabor, poder-se-ia dizer. Talvez inevitáveis, mas sempre criticáveis. Bem sabe o tradutor que nunca é seguro abrir o flanco.

A teoria do encaixe das línguas é, na melhor das hipóteses, uma boa mentira, espécie de ex-promissora ilusão. Nela não se pode fiar, como, de resto, não se pode fiar nem oitenta por cento em nenhuma teoria de tradução. O tradutor, como nunca, se vê entregue à própria sorte, boiando precariamente sem salva-vidas. Sozinho, sem baliza, teoria ou utopia.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho