O conflito em todos nós (1)

As situações críticas da narrativa, às vezes chamadas de conflitos, são os acontecimentos que conduzem o interesse do leitor, arrastando-o até a última página
Ilustração: Diego Carvalho
01/12/2020

1.
Se nossa vida é um incombustível conflito, por que, quando abrimos um romance, não queremos encontrar a tranquilidade, mas buscar justamente o conflito? O fato é que estamos imersos num conflito dominante e permanente desde que amanhecemos até o pôr do sol — e continuamos com ele durante os pesadelos, e ele nos acompanhará até o último dia da vida e, talvez, venhamos a ser lembrados por nossos pósteros apenas por essa circunstância. Por outro lado, ao abrir o mesmo romance, vemos as personagens envoltas em situações conflitivas, que, via de regra, implicam a existência de outra personagem. A propósito: melhor esquecer o raso esquema protagonista x antagonista, que tanto banaliza as análises literárias.

2.
Talvez o leitor tenha atentado para o fato de que, no parágrafo acima, e de caso pensado, a palavra “conflito” — e sua adjetivação — foi utilizada em duas diferentes acepções e contextos. Por primeiro, referimos os conflitos propriamente ditos, originários, transcendentais e permanentes. Depois, citamos as ocorrências do quotidiano, de presença imediata, que deveriam ser chamadas de complicações, ou de situações críticas. Não são conceitos opostos, mas paralelos e complementares, e quando se fala em literatura de ficção, é importante levar esse dado em conta para que evitemos confusões que, em vão, inquietam jovens ficcionistas.

3.
As situações críticas da narrativa, as complicações — às vezes chamadas de conflitos, daí a heterodoxia semântica — são os acontecimentos que conduzem o interesse do leitor, arrastando-o em frente até a última página. Pensemos no Hamlet: a situação crítica é: conseguirá o jovem príncipe vingar a morte de seu pai? Para os leitores habituais, a busca da resposta a essa pergunta é suficiente para o encantamento da leitura. É possível imaginar que esse deslinde seria o principal interesse das plateias de Shakespeare, e ficavam torcendo para que essa vingança acontecesse. Num texto mais moderno, como A fogueira das vaidades, a situação crítica é: conseguirá Sherman McCoy safar-se da justiça, depois que o descobrem envolvido na morte acidental de um rapaz negro? O leitor é levado pela mão do autor com a tensão em alta voltagem até que isso se resolva.

4.
Em meio ao transcurso da resolução da situação crítica dominante, veremos microssituações críticas: a amante de Sherman McCoy irá assumir a culpa, uma vez que ela dirigia o carro que atropelou o jovem? A esposa de McCoy irá abandoná-lo, depois que lhe descobriu a traição? No Hamlet: Cláudio tentará contra a vida de Hamlet? Polônio conseguirá atinar que é fingimento a loucura de Hamlet? O que acontecerá com a infeliz Ofélia? Todas essas perguntas são artifícios autorais, e variam de história para história. Não há duas histórias com as mesmas situações críticas [a principal e as microssituações], sob pena de plágio.

5.
E agora, o conflito em sentido estrito. Ou os conflitos. Estes situam-se num plano transcendental, e expressam as grandes preocupações do ser humano, e, por isso, um mesmo conflito pode estar presente em inúmeras histórias [sem plágio] e sempre — porque são conflitos — cada conflito ontologicamente constituído por uma díade composta por elementos divergentes. No romance de Tom Wolfe, por exemplo, o conflito dominante é a oposição entre a Verdade e a Mentira [de propósito aqui grafadas com letra maiúscula]. O mesmo conflito está em Os miseráveis, em que Jean Valjean se debate em viver uma vida digna em oposição à antiga, em que foi prisioneiro. No drama shakespeariano, o conflito é mais evidente, porque exposto pela própria personagem em seu famoso monólogo: Viver [to be] ou Morrer [not to be], e que se apresenta também no drama de Antígona: sepultar o irmão e morrer por ordem de Creon ou deixar insepulto Polinice, desagradar os deuses, e também morrer; em ambos casos, o Viver é seu oposto. Perceba-se que são entidades que, desde sempre, foram representadas pela cultura em suas múltiplas expressões, e não apenas literárias. Esses conflitos são continentes de diversas preocupações, tais como deontológicas [a Verdade e a Mentira] ou metafísicas [a Vida e a Morte]. E aqui temos a repetição do fenômeno das situações críticas: assim como há um conflito dominante, pode haver outros, paralelos e talvez com não tanta força: no Hamlet, ao lado da Vida x Morte, está Honra x Desonra, e essa última dupla também aparece em Os miseráveis. Em A fogueira das vaidades ressalta outro conflito acessório: Essência x Aparência.

6.
Uma pergunta, agora, é fundamental, em tom de reiteração: por que, se na nossa vida experimentamos a presença poderosa de grandes conflitos, por que, afinal, não encontramos isso representado nos romances que escrevemos? Por qual motivo há tantas narrativas literárias sem conflitos? A resposta é quase impossível, e talvez deva ser buscada em domínios extraliterários. É muito difícil que uma pessoa frívola [não digo falsos frívolos, como Truman Capote, Tom Wolfe, Oscar Wilde, F. Scott Fitzgerald, etc.] tenha drama suficiente para ser representado no romance. Trata-se de uma questão de sensibilidade. Pode um escritor espremer seu cérebro para incluir conflito em sua história, mas se ele não reconhecer conflitos universais em si mesmo, a tarefa será inútil. Outra explicação pode estar na insegurança: terei eu capacidade literária para lidar com essa questão?

7.
Quem quer ser ficcionista deve entender que o romance que permanece é aquele que, vencidas e esquecidas as situações críticas, nos deixa de herança o conflito — e é dele que o leitor lembrará ao evocar o livro. Vidas secas estará sempre na memória porque traduz a oposição entre o Morrer x Sobreviver, e isso nos atinge a todos, inspirando uma terna solidariedade. Por isso voltamos tanto a essa obra de Graciliano Ramos. Outro livro de permanência garantida é O alienista, no qual vemos a insolúvel oposição entre Sanidade x Loucura, estas sim, bem próximas de nós nos dias atuais. O mesmo sucede com o Fausto, de que poucos recordam o enredo, mas que não tiram da cabeça o grande conflito que assombra a Humanidade: Velhice x Juventude.

8.
Não há uma técnica para ser sugerida a iniciantes, a não ser: leitura, muita leitura; reler os romances inesquecíveis, à busca do seu conflito, o qual foi o móvel para que tenhamos tanta vontade de relê-lo; verificar, nas entrelinhas das situações narradas, nas falas das personagens, mais no não dito do que no dito, onde se ocultam os conflitos. Para isso é preciso sensibilidade e vagar. Aqueles romances que se põem em pé apenas por suas peripécias, e que perdem todo o sentido quando terminamos a leitura, melhor passá-los adiante. Sempre haverá quem goste. E, voltando à pergunta do parágrafo 6: talvez não fosse má ideia repassar nossos conceitos sobre a vida e o nosso papel perante a finitude humana. Ou nunca nos ocorreu pensar nisso?

PS.: Antes de encerrar, cabe dizer que um tema ficou faltando: como o ficcionista articula as situações críticas com o conflito? Por sua extensão e certa complexidade, deverá ficar para uma coluna exclusiva, a próxima.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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