Um rosto entre as árvores

A cicatriz na testa, o muro de cedros atrás do gol e os crisântemos antes do abraço desajeitado
01/06/2009

Descíamos a escada rumo à cama elástica. Deixávamos para trás a algaravia da pequena multidão a comemorar o primeiro aniversário do esperto Davi. No colo, disse-lhe: “Papai vai cuidar de você”. “E o que acontece com quem não tem papai e mamãe?”, perguntou-me numa assombrosa frase bem construída. Após uma rápida resposta, seguimos em direção ao brinquedo a balançar enlouquecido pelo peso da molecada que o esmagava com a fúria proporcionada pela vida. Segurei-a firme pelas pequeninas mãos à borda da cama elástica, enquanto a lembrança de minha irmã habitava-me.

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O fim de tarde trazia por entre as flores da chácara-morada os gritos da mãe para que entrássemos em casa. Corríamos os últimos metros atrás da bola de plástico no terreiro de pedras e buracos. Na janela, algumas velas brigavam em vão contra a escuridão que em breve nos engoliria. “Onde está a irmã de vocês?” Era minha mãe em busca da filha perdida pelas brincadeiras do dia. Nossa irmã era a caçula. Éramos três irmãos. Hoje, somos apenas dois. Não sabíamos nada sobre o seu paradeiro. Fazer o gol e não estropiar o dedão descalço no terreiro pedregoso eram nossas únicas preocupações. O resto, deixávamos para nossos pais, desde que chegáramos a C. — esta cidade que nos sepulta a todos lentamente.

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Atrás da trave, uma parede de cedros servia de barreira para a bola não sumir no matagal. As frestas das árvores, esconderijos perfeitos. Por ali, deslizávamos o corpo como se aos grotões do mundo estivéssemos de volta. A poucos quilômetros, o centro de C. rugia enfurecido em suas ruas infinitas e carros a atropelar galinhas desavisadas. Antes do último gol em meu irmão já destruído pelo cansaço, vi o pequeno cedro mexer-se. A experiência do olhar dava-me a certeza de que nossa irmã ali se escondia para não lavar os pés na gamela ao lado da porta de casa. Fugíamos do banho feito porcos da faca afiada de nosso pai. O cansaço de mamãe, às vezes, era cúmplice. Os pés lavados na gamela — a mesma que servira de cocho para os porcos — era o consolo à autoridade materna.

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Atirei a pedra na direção do movimento, entre as árvores. A maldade infantil não tem limites. Aos berros, rosto manchado de sangue, minha irmã saiu do frágil esconderijo e correu em direção à mãe. A marca na testa a acompanharia para sempre. Ou quase. Não lembro se, naquele dia, tomei banho ou apenas lavei os pés na gamela. Tínhamos apenas um porco no improvisado chiqueiro urbano no fundo de casa.

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O telefone arrebentou a madrugada. Acordei assustado. Tinha de ir ao hospital; minha irmã estava internada, dizia-me uma voz conhecida. Eu não sabia de nada. Tudo ocorrera em menos de 12 horas. Chegara tarde do jornal e nenhuma informação sobre hospital, doença, me fora passada. A morte sempre é mais rápida e não me esperou. Quando cheguei ao São Vicente — acho uma imensa ironia este nome em um hospital —, o médico todo de branco (não deveria estar de preto com uma foice na mão direita?) apenas olhou-me. Aquele corredor por onde regressei em nada lembrava o terreiro pedregoso da infância: era limpo e lisinho. Meus pés por ali escorregaram de volta a casa. Precisava buscar minha mãe e dizer-lhe que a sua família encolhera.

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Entre as flores — sempre elas —, o rosto no caixão não expressava nada. Olhava e via apenas a indelével marca na testa. Nunca lhe pedira desculpas.

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Quando cheguei em casa, minha mãe me esperava. O dia nascia. “Está tudo bem, mãe”, disse-lhe, tentando acreditar na mentira. (Tempos depois, descobri que nunca se pode dizer “está tudo bem” quando “está tudo horrível”, principalmente quando a morte é o assunto). Levei-a ao hospital. Lá, a mesma pergunta da infância: “Onde está a sua irmã?” ou “Onde está a minha filha?” E eu, para resolver o mistério, não podia simplesmente jogar uma pedra nos cedros atrás do gol. A morte é imune a pedradas. O médico deu-lhe a notícia. No sofá, minha mãe transformou-se novamente no animal indefeso de mãos imensas e gritos de desespero. Igual quando seu pai resolvera, havia poucos anos, dependurar-se numa árvore na infinita distância entre o chão e seus pés a balançar no vazio. “Nãoooooooooooooooooooooooo.” O grito de minha mãe percorreu todos os corredores limpos e lisinhos do São Vicente. E, ainda hoje, às vezes, me acorda no meio da noite.

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A morte de nossa irmã trouxe-me um desajeitado abraço de meu irmão. O único de que tenho lembrança. Um encontro de corpos silenciosos. Um encontro seco e abrupto. Os seus braços envolveram-me como se a dizer que ainda restava algo. Não sabíamos muito bem o quê. Nem no momento dos gols do nosso timinho de infância nos abraçávamos. Ele, goleiro. Eu, atacante. Acho que desde sempre nos mantivemos a uma distância insuperável. Adulto, resolvi virar zagueiro para, quem sabe, rondar-lhe os passos. Mas já era tarde. Nunca mais jogamos futebol juntos. E quando o fizemos, os silêncios e diferenças já tinham construído entre nós um muro muito mais sólido do que os dos cedros atrás do gol infantil.

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Evito ir a velórios devido à minha imensa incapacidade de dizer algo que realmente faça sentido num momento em que tudo parece perder o sentido. Aquele choro abafado. O grito antes de se fechar o caixão. O cheiro das flores — estas que sempre me remetem à infância e às latas cheias de crisântemos nas proximidades dos cemitérios no Dia de Finados. Íamos alegres. Para nós, ganhar alguns trocados para o chiclete era o que realmente importava. Para nossos pais, a sobrevivência.

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Olhava minha irmã entre aquelas flores (seriam crisântemos?) e via apenas a pequena, mas visível, cicatriz a pintar-lhe a testa. A juventude ainda lhe rondava o corpo. Era questão de tempo. Numa parede de concreto cinza a colocaram. Havia muitos outros a lhe fazer companhia. Não havia nenhum cedro por perto. Nunca mais voltei ao cemitério.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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