O silêncio do pai

O encontro com Paul Baranya em Budapeste, o imundo restaurante japonês em Madri e o livro de Autran Dourado
01/02/2011

“Me indique um bom livro.” Quando este pedido — quase uma súplica — chega-me, adentro uma região de sombras e dúvidas. Alguns me olham como se eu fosse um farol a iluminá-los o caminho de escuridão. Não desconfiam a biruta desnorteada que rege os movimentos deste espantalho pelo labirinto da literatura.

Com espanto, admiro a ansiedade, insegurança, de meu interlocutor à espera de alguma salvação. Deseja jogar-se no buraco escavado no solo arenoso e voar feito a Alice de Carroll. Mas não sabe, não desconfia, por que janela, porta, fenda, mísero vão. Então, a súplica: “Que livro devo ler?”. Na tentativa de não decepcionar, busco na memória os livros que deixaram marcas expressivas em mim, que ajudaram a construir este edifício em ruínas. Recolho a frase, um tanto piegas, é verdade, do autor húngaro Paul Baranya: “A literatura é um valioso tesouro que devemos procurar a vida toda. E, quando encontrado, é preciso dividi-lo com generosidade com os demais”. O conselho — ou seria uma piada? — chegou-me durante um dos mais gélidos invernos de Budapeste, no final dos anos 90. Espécie de tradutor — aprendi húngaro com minha bisavó materna —, acompanhara o escritor e jornalista José Castello em uma missão complicada: entrevistar Baranya, um escritor arredio, como o definiu Castello. Ao fim, trouxemos na mala apenas esta frase, poucos monossílabos e uma gripe monumental.

Na volta ao Brasil, fizemos uma pequena parada em Madri — cidade onde pretendia morar. A intenção, além de conhecer uma livraria especializada em livros sobre alquimia, próxima à estação Atocha, que sofreria um terrível atentado em 2004, era levar Castello ao restaurante mais antigo do mundo: o Botín, fundado em 1725, cujos camarões gigantes ao vinho são uma especialidade quase obscena. Ali, Goya lavou pratos.

No devaneio da caminhada, nunca chegamos ao Botín. Acabamos num restaurante dos mais sujos ao lado da Plaza del Sol, diante da banal (mas famosa) estátua do urso. O sabor da comida compensou a sujeira milenar do restaurante. Antes que sushis e sashimis dominassem nossa atenção, Castello falou longamente sobre literatura e fracasso. Talvez ainda impressionado com a estranha e taciturna figura de Baranya. Atento a suas palavras, deixei-me levar pelos corredores que me arrastaram até os livros — um caminho errático e tortuoso. Após algum tempo, o silêncio infiltrou-se por todo o restaurante — filme mudo em câmara lenta. Aproveito para dizer o quanto Baranya é parecido com meu pai. Olhá-lo é estar diante de um espelho em cujo reflexo reluzem os traços de um homem simples, palavras entrecortadas e gestos lentos e tímidos — meu pai. Recupero também a teoria piegas de Baranya: a literatura é um tesouro que devemos dividir.

Numa tarde abafada de janeiro — lembro do ventilador a espalhar folhas de jornal pela biblioteca — ele me fez o pedido que até hoje tento compreender e atender: “Filho, me empresta um livro para ler”. O detalhe está, penso agora, neste “para ler”. Ele desejava percorrer a trilha por onde eu me perdia, tateava na escuridão — era o João a jogar migalhas de pão pela floresta.

O estrondo daquelas palavras vindas da boca que tão pouco se oferecia atirou-me sem qualquer delicadeza na imensa região de sombras. Tateei as prateleiras feito o cego que busca amparo para atravessar a avenida raivosa. Um livro. Era urgente encontrar o livro do pai. Qual? Nunca o vira antes com um livro nas mãos. Nunca o vira dormir com um romance sobre o peito. Nunca lera histórias para nós. Nunca tivera uma biblioteca em casa. O estudo precário nos confins do universo possibilitava apenas a leitura de jornais. O que lhe dizem as letras impressas no papel? Que mundo aqueles olhos liam, encontravam? Lia para negar a existência ou para comprovar a ausência?

Perguntas que nunca fiz, mas que naquele momento — em pânico — enchiam-me de insegurança. Na escuridão, encontrei Autran Dourado — autor que pouco li. Agarrei-me a um livro dele, retirei-o da estante e cego entreguei-o a meu pai: “Leia este”, disse com a voz fraca e envergonhada. Não sei que livro era, apagou-se completamente de mim. Terá mesmo existido?

Conto esta história — uma das tantas derrotas que me cercam — ao Castello, enquanto ele acaricia a capa de Brasil, o estranho romance de Paul Baranya. Ele não diz nada, apenas ouve. Talvez entenda o fracasso no acúmulo de minhas palavras.

Alguns dias após o inusitado pedido, meu pai retornou. Sem dizer palavra, estendeu-me o livro. O silêncio preencheu a bolha que nos envolvia. Lentamente, devolvi o exemplar à estante. Segue lá entre os demais livros de Autran Dourado. Qual será? Nada dissemos um ao outro. Não perguntei se lera até o fim, se entendera a história. Ele apenas fez o gesto lento — imenso iceberg a cortar o oceano na noite sem estrelas.

Meu pai nunca mais me pediu nenhum livro “para ler”. Eu sempre o encontro em cada página virada. Mas como diz Baranya: “Nenhuma palavra é capaz de dar conta do silêncio escondido dentro de cada um de nós”.

NOTA
Crônica publicada originalmente no site Vida Breve, em 10 de janeiro de 2011.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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