O pequeno argelino

Algumas batalhas são vencidas com dois picolés de chocolate. Nada sabíamos sobre a Argélia. Não falávamos árabe, berbere ou francês. Éramos mudos numa algazarra
Ilustração: Tiago Silva
03/05/2015

Algumas batalhas são vencidas com dois picolés de chocolate. Nada sabíamos sobre a Argélia. Não falávamos árabe, berbere ou francês. Éramos mudos numa algazarra. Mas levávamos no peito a bandeira estampada na camiseta branca comprada há alguns dias nas ruas de Argel. É bonita: a lua crescente e a estrela vermelha lado a lado. Aquela foi uma viagem estranha. O sol inclemente na barulhenta cidade me ordenava desistir. Após muitas voltas no trânsito de engarrafamentos intermináveis, encontrei o uniforme numa loja apinhada de quinquilharias esportivas. Camiseta e calção para um menino magro e louro de cinco anos. Meu pequeno argelino. Seríamos mais dois na multidão a gritar Vive l’Algérie!. Do outro lado, os urros russos, gritos afônicos de desespero diante do deserto que se avizinhava.

— O que eles estão dizendo, papai?

— Não tenho a menor ideia, filho. Algo como “Vamos, Rússia”. Acho.

Orgulhoso e feliz, o pequeno argelino louro de cinco anos segura minha mão rumo ao estádio de futebol. Logo na entrada, um imenso pacote de pipoca lhe arregala os olhos. Sem tempo para qualquer reação, desembolso uma nota de dinheiro. Seriam muitas até o fim da nossa aventura. Carrego-o escadaria acima. O estádio é novo. Fora ampliado para a Copa. Gastaram muitos milhões de reais a mais do que o necessário. Não penso nisso. Não naquele momento. Precisamos alcançar o cume. A fileira W. As cadeiras 22 e 23 estão à nossa espera. Ele carrega com orgulho no corpo magricela o uniformo todo branco, com a estrela e lua crescente no peito. Sorri o tempo todo. Eu também visto uma camiseta da Argélia. Ele está ao meu lado. De repente, se agarra nos meus braços e escala o conforto do colo. Estrangula o pacote de pipoca nas mãos de dedos pequenos. O nosso primeiro jogo de futebol de Copa do Mundo num estádio. Somos duas crianças chutando uma bola de capotão no terreiro atrás de casa.

Os times entram em campo. Perfilados, os jogadores cantam os hinos. Os russos abrem a garganta. Palavras estranhas, pesadas, são libertadas de um calabouço na Sibéria. São nossos adversários. É preciso ironizá-los. Os argelinos, em seguida, cantam com desmedida alegria um hino que também ignoramos.

— O que eles estão dizendo, papai?

— É o hino, filho. Não entendo. Mas é bonito.

— Sim, papai. É bonito.

Ele olha o gramado. Talvez sonhe com o dia em que estará lá entre os demais jogadores.

— Vou jogar no Barcelona.

Quando o jogo começa, sei que sofrer é o nosso destino. A bola sobe e encontra uma cabeçada certeira no canto do nosso goleiro. Os russos pulam, gritam, se abraçam. Estão felizes. Nós fingimos indiferença.

Ao meu lado, as primeiras gotas do picolé de chocolate mancham a camiseta branca do pequeno argelino.

— Cuidado, filho.

Ele me olha como se eu não entendesse que aos cinco anos de idade a lei da gravidade é condizente com roupas lambuzadas de sorvete. No Brasil e na Argélia.

Quando o primeiro tempo acaba, o pacote de pipoca está pela metade. O palito de picolé é apenas uma recordação. A Rússia vence o jogo. Desço para ir ao banheiro. Deixo o pequeno argelino aos cuidados de um amigo.

— Compra guaraná, papai.

Volto com um copo imenso de coca-cola.

— Não tinha guaraná — explico.

Ele ignora a cor e o gosto do refrigerante. Abraça o copo vermelho e branco. Os goles são rápidos e barulhentos. Se estivéssemos no Ramadã, já o teríamos profanado com pipoca, picolé e refrigerante.

De repente, parte do estádio explode numa gritaria. A bola encontra as redes russas.

— Quem marcou o gol, papai?

— O número 13.

Não tenho certeza. Não sei o nome dele. Não sabemos o nome de nenhum dos nossos jogadores. Não sabemos nada sobre a Argélia. Estive lá há alguns dias. Sou um argelino recente. Ainda estou me acostumando à nova pátria. Tento acessar a escalação pelo celular. A conexão lenta logo me faz desistir. Preferimos o mistério que nos embala numa tarde de quinta-feira.

A partida segue o seu ritmo. Não sei se é um bom jogo. Acho que não. Mas é, com certeza, o melhor das nossas vidas. O pequeno argelino grita Argélia, Argélia, Argélia. E sorri com a alegria que só na infância é possível. Boa parte do estádio grita Vive l’Algérie!, Vive l’Algérie!, Vive l’Algérie!. Ele não sabe gritar Vive l’Algérie!. Não sabemos francês. Contenta-se com o grito pastoso que escorre pela baba do segundo picolé de chocolate. Desisto de me preocupar com as volumosas gotas sobre a bandeira do nosso país. A estrela e a lua crescente ganham a tonalidade preta sobre o vermelho. O branco é turvo. A felicidade é multicolor.

No meio do gramado, os jogadores argelinos se abraçam, sorriem, choram. Pela primeira vez na história, a Argélia passa para a segunda fase da Copa do Mundo. Vive l’Algérie!.

A noite chega por trás dos prédios e toma conta da cidade. Carrego o pequeno argelino no colo. Caminho em direção à saída. Na rua, passamos por entre argelinos e russos de verdade. Ele corre e chuta o ar, como se uma imensa bola imaginária estivesse a sua espera. No peito, carrega as manchas de dois picolés de chocolate.

Em breve, o Barcelona terá no ataque Messi, Neymar e um pequeno argelino louro.

 

NOTA
A crônica O pequeno argelino foi publicada originalmente no Vida Breve (www.vidabreve.com.br)

 

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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