O judeu e o búfalo

É muito difícil vingar-se do inimigo quando a batalha só tem derrotados
Ilustração: Raquel Matsushita
30/08/2019

Da boca frouxa, sem dentes ao fundo, não escorria baba. O cão arfava perdido do dono para acolhê-lo. Sobre a maca no posto de saúde, o pai experimentava a proximidade da morte. Eu desconhecia aquele homem encostado à parede branca. Os vincos do rosto esculpidos pela lava de um vulcão. Pernas e braços magros a concederem um aspecto mambembe — como se fossem incapazes de manter o equilíbrio do corpo de barriga disforme. Impossível não lembrar dos improvisados brinquedos feitos com uma batata e quatro palitos de fósforo no terreiro ao lado de casa. Agora, a noite lhe faz companhia. O neto — meu sobrinho — mastiga silêncios na fria cadeira de plástico. Quando cheguei, o quadro se completara: três homens desnorteados e assombrados por uma maldição.

Na infância, a frase percorria nossos ouvidos com alguma frequência: “Meu avô era judeu”. O pai se aproximava e sem mísero carinho a oferecer nos entregava palavras quase vulgares. “E tinha os olhos bem azuis.” Nada fazia muito sentido. O pai tinha os pés saídos do barro da roça, pele escura, mãos rudes, gestos lentos, mas agressivos. Um bruto. A ignorância guiava seus passos pela terra diminuta. Nada sabia sobre o holocausto, a Shoá, o genocídio, Hitler. Nossas estratégias de guerra se resumiam à busca de uma esquálida sobrevivência. Assim os dias passavam. Mesmo nascido logo após a Segunda Guerra, ele até hoje não faz ideia de seus horrores. É uma ampulheta sem areia a medir um tempo inexistente.

O pai só carrega lembrança ruim. Cérbero sem inferno para proteger. Noites de violência e dias de solidão. Adentrava a casa feito animal indomável. Um búfalo disposto a esmagar formigas assustadas. Recolhíamo-nos a um canto. Tínhamos pouco a fazer. A mãe rezava. Os dedos grossos e feios agarrados ao rosário de plástico. Cristo a balançar nas mãos trêmulas do nosso desespero doméstico. Nós fingíamos que acreditávamos na boca banguela da mãe. Pai nosso não estava no céu. Estava ali na nossa cozinha com uma faca na mão. Os olhos em brasa. Trancávamo-nos no quarto à espera de que o búfalo retornasse à planície longínqua.

A maca ampara um homem velho, cansado e doente. Não parecia o pai. Era apenas o espectro do homem que tanto pavor nos causara nas noites infinitas. O álcool o destroçara com garras pontiagudas — uma máquina de moer carne cuspira sem piedade restos de um pai. Quase não falava; grunhidos escapavam por entre a barba espessa e malcuidada. O pulso perfurado para a entrada de um medicamento. O hematoma no rosto envelhecido denunciava a queda no banheiro. No braço o sangue já endurecera no corte a escavar a geografia da pele. Aproximo a boca e sussurro ao seu ouvido: “Está tudo bem”. A mentira escorre pela indiferença da noite.

Por um longo período, o pai deixou de beber. Nunca entendi os motivos: medo da morte, vergonha, arrependimento. Um dia, simplesmente parou. Abandonou a garrafa, guardou as facas, recolheu as garras. Já não fazia muita diferença. Tínhamos crescido, nossas pernas ganharam vitalidade para correr de búfalos. A mãe agarrava-se aos últimos segundos de vida, sem despregar os olhos de Deus — seu único refúgio. Tudo transparecia uma calma brutal. Mas o demônio seguia quieto, preso numa frágil garrafa. O copo na ordinária cristaleira. A eternidade do pêndulo nos perseguia. Ora, para cima. Ora, para baixo. O eterno movimento da maldição.

Nestes tempos de sobriedade, já adulto, um homem desengonçado e daltônico, ouvi novamente a frase escondida em algum sótão empoeirado: “Meu avô era judeu”. Era como se aquela mísera informação lhe cobrisse de alguma dignidade histórica. Ou nos protegesse de nossas próprias misérias. Imobilizado pelo medo ancestral, jamais dei continuidade à conversa. Nada sei sobre o bisavô judeu. Não sei o sobrenome, a origem, a vida, o fim. Um vazio me une a este ancestral deslocado numa raquítica árvore genealógica. Pouco sei sobre meus antepassados paternos. Talvez me imobilize o medo de que Cérbero abane o rabo e me convide a passear.

No hospital, o médico apertou a barriga inchada do pai. O cheiro do corpo empesteava o ar carregado. “Se continuar bebendo, o senhor não vai longe.” A advertência me jogou contra a parede. Ir para onde? Na enfermaria, outros doentes olhavam indiferentes para a ventríloqua tevê na parede. Cada um morria em sua própria solidão. “Não vou mais beber.” A voz cavernosa do pai me tirou da imobilidade. O búfalo resfolegava animado com o sol que brotava na janela.

Meu avô paterno morreu na rua. Encontraram o corpo estirado na tarde quente. Morreu bêbado. Meu avô era alcoólatra; meu pai é alcoólatra; meu irmão é alcoólatra; eu sou alcoólatra há quase duas décadas abstêmio. Somos uma manada desgovernada. Não há pradaria suficiente para nos abrigar. Às vezes, estacamos, como o pai nos ensinou. Para, em seguida, retomarmos o nosso percurso. Sempre que me oferecem um copo, vejo uma faca vindo em minha direção. Há noites escuras que os dias não apagam.

Após algum tempo no hospital, o pai voltou para casa. Recolheu-se ao silêncio das alfaces no quintal. A cuia de chimarrão substituiu o copo de cachaça. A vassoura arrastou a sujeira dos cômodos. A tevê ganhou novamente a monocórdica voz de um padre numa missa eterna. O pai nosso está preso na tela fosforescente de cores indefinidas. Poderia ficar lá para sempre. Mas nunca se sabe o que a misericórdia divina nos reserva. Na casa do pai, tudo parece em delicado equilíbrio. O crucifixo na parede ainda sustenta um Cristo na vertical. A gangorra sobe e desce lentamente. Para baixo e para cima. Para baixo e para cima.

A manhã se esgarça por trás dos pinheiros. Na esquina, a pequena metalúrgica inicia os ruídos do dia. O pai passa diante de casa. A cabeça baixa, o corpo em lenta decomposição. Uma batata sustentada por quatro palitos de fósforo. Lembra um animal cansado em busca de um dono. Está há alguns dias sem beber. Para onde vai tão cedo? Da janela do quarto, avisto a sua sombra do outro lado da rua. Não sei chamá-lo em hebraico ou iídiche. Resta-me apenas o silêncio.

É muito difícil vingar-se do inimigo quando a batalha só tem derrotados.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho