Sou daltônico (e míope). A profusão de cores do mundo me açoita a cara a cada instante e sempre me atira — feito um passarinho atingido no peito pelo bodoque do piá assassino — às lembranças da infância. Ser daltônico aqui em C. é pintar cores em preto-e-branco. Quando criança, a palavra “idiota” me acompanhou durante bom tempo. O riso da maldade infantil me mostrava que algo andava manco em minhas inusitadas tentativas de colorir o mundo: meus mapas de geografia, uma piada multiforme e repleta de pontinhos multicoloridos — pintava os arredores de todas as cores possíveis, sem nunca saber em que território desconhecido pisava. Minhas pegadas eram bambas diante do sarcasmo: coloria árvores de vermelho, céus de verde, mares de roxo, cachorros de alaranjado. Sinto certa saudade daqueles trabalhos escolares em que a vida era-me muito mais divertida, apesar do labirinto colorido que sempre percorria.
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Quando chegamos a C., espremidos na cabine de um caminhão que nos trouxera de uma terra que nos cuspia a todos sem nenhuma dó, vi a neblina a pairar sobre a manhã de descobertas. Tinha seis anos. Para mim, C. seria sempre cinza, borrada pela neblina da infância. Aqui, descobri que a cidade, cujo útero seco nos abrigaria pela vida toda, tem poucas cores possíveis. Lugar ideal para um daltônico passar invisível.
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Só descobri que era daltônico na adolescência. Pela mão de uma namorada, parei diante do oftalmologista e uma infinidade de plaquinhas com dezenas de pontinhos coloridos. O inferno do daltônico deve se parecer muito com estes milhares de pontinhos, pendurados num arco-íris. Aos meus olhos, nada sobressaía naquelas malditas plaquinhas. “Você tem de ver um número, uma letra”, dizia-me o médico. “Tenho de ver”, eu pensava, com certo nervosismo. “Tenho de ver, tenho de ver, tenho de ver.” Maldição. Não via absolutamente nada. Apenas dezenas, centenas, milhares, milhões de pontinhos dançando, copulando, se reproduzindo diante dos meus olhos. Ouvia o risinho dos meus amigos de escola. Uma algaravia sem-fim de cores e vozes. “É, você é bem daltônico”, disse-me o médico de branco, após muitas tentativas naquela sucessão de placas. Certo alívio percorreu meu corpo. Além de idiota, eu era daltônico.
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Quando recebi a carteira de motorista, não consegui reprimir o riso, que se transformou numa sonora e sarcástica gargalhada. O funcionário do Detran, com a burocracia a percorrer-lhe o corpo, assustou-se diante do louco que em breve cortaria as ruas de C. ao volante. Com certeza, naquele momento, Simão Bacamarte me trancafiaria para sempre na Casa Verde. Já era “velho”, beirando os 30 anos, quando empurrado por outra namorada (mulheres, sempre elas) parei (apavorado, é claro) diante da médica para o “exame de vista”. Uma pequena caixa escura me aguardava. Enfiei os olhos na escuridão. Tinha certeza de que ela me engoliria para nunca mais voltar a C. e seus arames em forma de arquitetura. “Que cor você vê?”, perguntou-me a médica. Não via cor alguma. Ou via. Sei lá. Era um vaga-lume a piscar na imensidão escura. De que cor é a luz do vaga-lume? Errei todas. Derrotado pelas cores, poderia fazer o teste mais uma vez. Nova tentativa. Disse à outra médica, mais simpática: “Se eu me concentrar bastante, consigo acertar as cores. O seu crachá, por exemplo, é verde”. Ela sorriu diante da “brincadeira”. O crachá era vermelho. Concentrei-me ao máximo e acertei alguns dos vaga-lumes que me desnorteavam na caixa escura. Sim, daltônicos podem dirigir.
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Dr. Arthur é jovem e bem-disposto para falar sobre daltonismo. Explica-me que somos uma “evolução” humana. Não consigo esconder o riso irônico. Muita conversa e descubro que nós, os daltônicos, além de confundirmos verde, vermelho, azul, amarelo, laranja, marrom, creme… e o restante de todas as cores que habitam o mundo (com exagero, é claro), à noite enxergamos melhor que todos os demais seres normais. Eu enxergo melhor à noite que um não-daltônico. Seria uma maravilha, caso eu também não fosse míope. Mas os daltônicos notívagos conseguem ver com mais precisão os contornos dos objetos na penumbra. É por isso, explica-me Dr. Arthur, que a linha de frente do exército norte-americano, em missões noturnas, é formada por daltônicos. Além da idiotia diante das cores, somos os primeiros a morrer. (Será que no momento derradeiro, na escuridão, conseguiremos vislumbrar com mais exatidão o rosto da morte?)
Refaço o teste de daltonismo. Agora, já tem um nome: teste de Ishihara. Tudo igual ao da adolescência. Plaquinhas, milhares de pontinhos, o riso dos amigos a martelar as lembranças, erros, números ilegíveis, semáforos apagados, uma nesga de esperança de que agora na vida adulta, beirando os 40 anos, tudo será diferente. “Você é o pior que já passou por aqui”, disse a auxiliar do Dr. Arthur. “Não fique triste”, completou. Pior? Não. Melhor. Sou o melhor daltônico que conheço. Nunca fico triste diante da minha incapacidade cromática. Pelo contrário. Nada melhor do que mentir a um não-daltônico. Aumento meu daltonismo sempre que me fazem a inevitável pergunta: “que cor é esta?” Erro de propósito. No entanto, muitas vezes, erro tentando acertar, e acerto tentando errar. Muitos duvidam do meu daltonismo. Não sabem que, além de daltônico (e míope), sou mentiroso.
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Carrego no colo minha pequena filha até o carro. Ela veste uniforme escolar azul, branco e amarelo. Aponto-lhe um arco-íris atrás de um pinheiro. “Lá”, digo-lhe. “Onde, papai?”, pergunta-me mais de três vezes. Desisto de mostrar-lhe um arco-íris que talvez só exista para mim.
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A rua Riachuelo, no centro de C., abriga as putas da minha vida. Elas, sozinhas ou em pequenos bandos, encostadas nas paredes cinza, exibem pernas roliças de crateras sufocadas em minissaias. As putas da Riachuelo têm a pele lunar. Algumas são esqueléticas; outras, adiposas. Nunca as esqueço. Desde menino, habitam o meu imaginário. Nunca as visitei. Por respeito e muito pavor. Antes de entrar na loja, admiro-as. Tenho entre 10 e 13 anos. Não mais que isso. Dinheiro no bolso após horas a plantar azaléias ou colher trigo na chácara-morada, entro na loja em cuja vitrine brilha um lindo tênis azul (sim, nós daltônicos gostamos de azul, mesmo quando este azul só existe para nós; à nossa maneira). Em breve, estará em meus pés rumo à casa do avô Sílvio, o homem de olhos azuis e mãos imensas que um dia deixou o corpo abandonar-se no vazio, na infinita distância entre seus pés e a terra que cultivara.
No ônibus de volta à terra que nos cuspira na infância, calço orgulhoso o tênis azul. “Será que tem rio na nova casa do avô?” A pergunta nos impulsiona rumo ao mundo que não mais nos pertence. C. e seus ruídos nos aprisionaram para sempre. Somos quatro: eu, meu irmão, minha irmã e a mãe. O pai nunca nos acompanhava. Sempre preferiu a distância e o silêncio. Da estrada, após duas trocas de ônibus, a casa do avô era um pontinho (outro) ainda longínquo. Teríamos de percorrer uma grande distância a pé. Na vidraça do ônibus, a chuva lambuzava nossa visão. Temia pelo tênis azul a reluzir nos pés infantis. Descemos todos. Logo, estaríamos na porteira da nova morada de nossos avós. Andávamos com empolgação. O tênis novo ajudava. Alguma distância percorrida, o pé encharcado, e o tênis começava a dar sinais de fragilidade. Logo, o pesadelo. Tantas azaléias plantadas, tantos pés de trigo para arranjos de flores colhidos. Tudo em vão. A água incolor da chuva destruía o tênis azul. Maldição, pensei. Lembrei-me da puta que me sorrira na saída da loja. Papelão sob a palmilha. Calçava uma fraude. O imponente tênis azul misturava-se à água, à lama, aos restos do caminho num emaranhado de cor indefinível. Não me lembro se chorei.
Às vezes, junto com a chuva vem o arco-íris. Sempre que o vejo — quantas cores tem o arco-íris do daltônico? —, penso: “no fim do arco-íris há um baú com um tesouro e um tênis azul”.
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Daltonismo não tem cura.
Nota
O nome da coluna Sujeito oculto é uma homenagem ao escritor Manoel Carlos Karam.