Ladrões de versos

A formação de uma quadrilha especializada em furtos e o livro ao lado da xícara de café
01/07/2009

Um dia, transformei minha mãe em ladra. Disse-lhe com desfaçatez: “Ninguém vai notar; apenas um entre tantos”. Desde então, há quase 20 anos, somos unidos pelo crime. Transformei-a em ladra. Ela, a mulher que me levava à igreja, rezava-me orações antes de deitar (o inesquecível Santo Anjo) e hoje ainda caminha grandes distâncias atrás da santinha que percorre o bairro de tempos em tempos. Sou o grande mentor de um furto. Somos uma pequena quadrilha. Não utilizamos violência, apenas engendramos bem o plano, percorremos cada detalhe à perfeição. Uso o plural para não enfrentar solitário a fúria divina. Ela virá, sem dúvida. Minha mãe, tenho certeza, teme prestar contas a Deus. Seu único crime. Não fugimos da polícia. A justiça não nos preocupa nada. Nosso crime prescreveu, caducou.

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Pelos corredores da Gazeta Mercantil, ouvia um rumor sobre um livro de poesias que em breve seria lançado. Um livro de poesias. A frase não desgrudava dos ouvidos. Na ampla sala, um pequeno grupo de jornalistas destruía as máquinas de escrever. Em seguida, alguns textos eram enviados àquela sala que tanto me aterrorizava. Confesso: ali entrei algumas vezes na hora do almoço, quando o seu dono não estava. Comia a marmita com avidez e, como um lacaio, infiltrava-me pela sala do diretor. Olhava livros. A máquina de escrever elétrica. Uma coisa espantosa. Bastava um leve toque nas teclas para um sonoro tilintar invadir a casa. Era quase mágica. Rápida como nada nunca antes. Eu, exímio datilógrafo, não poderia deixar pegadas. Apenas observava tudo antes de escapulir feito um rato. Depois de passar pelo olhar criterioso do diretor, as reportagens eram enviadas por telex (uma geringonça barulhenta a mastigar uma tirinha de papel). Tempos depois, sempre próximo àquela assustadora sala, aportou um aparelho de fax. Tive de aprender a escrever a palavra fax, mas a pronunciava com gosto quando os jornalistas me chamavam: “Ei, tem de passar um fax destas matérias”. Os textos iam direto para a guardiã dos interesses do homem mais temido naquela sala — pelo menos por mim —: o diretor regional da Gazeta Mercantil.

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“Mãe, pega apenas um. A mãe disse que há uma pilha na sala. Não vai fazer falta. Ninguém vai notar. Depois, eu devolvo. Não tenho coragem de pedir.” Após semanas de súplicas, consegui formar minha primeira (e única) quadrilha: eu e minha mãe. Eu, o mentor. Ela, a executora. Uma dupla perfeita. Em algum dia daquele 1991, quando cheguei em casa à noite da escola, após minha jornada como office-boy da Gazeta Mercantil, encontrei sobre a mesa o cobiçado objeto: O que se viveu, livro de poemas de Claudio Lachini. Nunca mais o devolveria (ou quase). O inferno nos esperava, mãe. Eu estava formado como ladrão de versos. Já tinha uma próxima vítima à vista.

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“Tira xerox destes textos.” A frase era apenas mais uma ordem que eu cumpria com prazer pelos corredores daquele jornal. Um paraíso se comparado à fábrica de móveis, à venda de flores diante de cemitérios e às fatigantes entregas de produtos odontológicos — trabalhos executados até então. Com aquelas folhas, rumava para a pequena sala de xerox (nunca consegui chamar xerox de fotocópia), de onde podia ver pela vidraça o temido diretor a trabalhar naquela invejável máquina elétrica. Eu, com certeza, datilografava melhor. Tenho até hoje o diploma do Senac. Enquanto os dedos gordos de Lachini enfrentavam algum tema espinhoso (como me parecia chato aquele jornal sem mulher pelada e futebol; era um jornal para executivos, diziam-me; eu me perguntava se executivo (?) não gostava de futebol e de mulher pelada; não entendia muito bem, mas flanava com orgulho entre jornalistas, secretárias e vendedores), a luz da máquina de xerox brilhava sobre versos de Nilson Monteiro, o jornalista baixinho, de cabelos sempre longos, risada miúda e prantos fáceis. Era uma cópia de um poema para ele, outra para mim. Mais uma vítima. Furto fácil. Lia às escondidas na escola ou na fila do banco. Alguns versos me acompanham até hoje. Inesquecíveis poemas de Lachini e Monteiro.

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Há palavras e gentes que nunca nos abandonam. A guardiã dos interesses do homem mais temido naquela sala chamava-se América Eudóxia de Araújo Guerra. Inesquecível. Guerra. Assustador. Outras a sucederam na missão de proteger a caverna onde habitava aquele senhor que com palavras, eu pensava, poderia mudar o mundo. Versos, reportagens, histórias brotavam-lhe da ponta dos dedos e repousavam no papel espremido na máquina elétrica. Mas nenhuma nunca chegou aos pés de América Eudóxia de Araújo Guerra. A guardiã que nunca descobriu que eu, após destruir o arroz e feijão da marmita, rastejava pela sala a tentar descobrir segredos.

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Não lembro como minha mãe foi contratada como empregada na casa de Claudio Lachini. Lembro-me, apenas, que ela era feliz a limpar banheiros, arrumar camas, varrer quintais, cuidar de uma casa que, a meus olhos, parecia uma imensidão inalcançável. Um dia, disse-me: “Vão te chamar para trabalhar como office-boy na Gazeta Mercantil. O seu Lachini deu a idéia”. Eu já ostentava o diploma de “auxiliar de escritório” do Senac. Em poucos dias, estava a correr as ruas de C., com uma pasta repleta de documentos, contas bancárias, depósitos, jornais. Nascia a minha quadrilha, especializada no furto de versos. Flores, móveis e material odontológico foram sepultados para sempre por uma aluvião de personagens.

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Claudio Lachini foi embora. A sucursal da Gazeta Mercantil fechou. Minha mãe varre outras casas. Nilson Monteiro seguiu sua carreira de jornalista. América luta outras guerras. Ninguém foi preso. Eu já não preciso mais roubar versos. Sou soterrado por livros que me chegam de todas as partes do mundo.

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Abro meu e-mail e vejo uma mensagem de Claudio Lachini. Convida-me para um café da manhã em um grande hotel de C. — esta cidade feita de arame e muita ilusão. Deseja conversar sobre literatura, projetos literários. Ele agora escreve romances. Chego na hora marcada. Carrego um pequeno livro. Coloco-o sobre a mesa, ao lado da xícara de café com leite. Conto-lhe a história de um furto. Algo se ilumina entre nós. Após lembranças de um tempo que nos pertence e nos acompanha para sempre, despeço-me levando de volta o exemplar do livro com um emocionado autógrafo. Mãe, não precisa se preocupar com o castigo divino. Estamos perdoados.

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O que se viveu — nunca um título de livro me pareceu tão pertinente — compõe minha biblioteca afetiva, ao lado de Simples, de Nilson Monteiro. Lachini e Monteiro não são meus poetas preferidos. Antes deles vêm Bandeira, Drummond, Vinicius, Eliot, Pavese, Quintana, Cabral, Seamus Heaney, Pessoa e outros. Mas são, com certeza, os mais importantes da minha vida.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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