Carta a F. ou O assobio perdido

Aquele homem dependurado pelo pescoço numa árvore é meu avô. Balança o corpo vertical na solidão da corda
Ilustração: Raquel Matsushita
01/07/2020

Acreditei que aquelas medidas eram o caminho certo. Infelizmente, errei. Gostaria de pedir perdão a todos aqueles que foram prejudicados pelo bloqueio dos ativos.
Fernando Collor de Mello, ex-presidente da República
O Estado de S. Paulo, 19 de maio de 2020.

Aquele homem dependurado pelo pescoço numa árvore é meu avô. Balança o corpo vertical na solidão da corda. Não sei exatamente onde está — o mapa de nossas tragédias familiares é incerto. Sei apenas que está morto. Um tanto estranho, admito, este abrupto início de uma carta anacrônica. As coisas sempre estiveram fora de lugar. Tudo repousava quieto num recôndito mínimo das minhas memórias. Alguns móveis antigos, prefiro não arrastar pelo assoalho de tábuas neste sótão empoeirado. Ratos e fantasmas se alvoroçam e reviram a minha insônia.

Ao receber a notícia de que o senhor decidira pedir perdão, uma onda insuportável arrastou-me. Durante dias, deixei a breve notícia sobre a mesa de trabalho com o título a brilhar nas madrugadas: “Após 30 anos, Collor se desculpa por confisco da poupança”. Miro sem ódio a sua foto: o olhar ainda é arrogante, os cabelos, outrora alinhados à base de punhados de gel, estão brancos e mantêm certa simetria. Mas o que me chama a atenção são as dobras abaixo do queixo — um sinal indisfarçável de que o tempo não nos poupa a ninguém. Aos setenta anos, o senhor é um homem de vigor quase inabalável. Noto que em volta do seu pescoço há uma elegante gravata. É bonita. Em volta do pescoço do meu avô havia uma corda. E ele tinha pouco mais de sessenta anos.

Naquele início dos anos noventa, eu era apenas um jovem magro, sonhador e daltônico. Tínhamos chegado da roça havia alguns anos. O pai — um homem bruto, silencioso e alcoólatra — trouxe-nos a C., a cidade planejada aqui no Sul. Planejada pra quem? Teríamos de cavar a sobrevivência no concreto dos dias, longe da rala plantação de milho e feijão. A mãe, empregada doméstica; o pai, motorista; os filhos, todos trabalhávamos desde criança para ajudar no sustento. Vendíamos flores na rua e em frente a cemitérios. À nossa maneira, sempre estivemos perto da morte. Éramos, enfim, uma típica família pobre de retirantes. Uma típica família brasileira. Ninguém lá em casa entendia nada de economia. Desta economia que homens sérios, terno e gravata, tentam explicar ao povo na tevê. Mas algo nos afetava quando a mãe dizia: “Não tem nada de salada pra comer, vai lá no mato catar serralha”. Serralha é um mato amargo com uma indisfarçável flor amarela na extremidade. À mesa fingia ser uma suculenta alface encharcada de vinagre. Mas sabíamos que não passava de comida de animal. Mentir para si mesmo também é uma forma de resistir.

Assistíamos com algum espanto à propaganda política: o caçador de marajás iria dar um jeito no Brasil. Era o senhor. Muita gente acreditou. Não sei se o pai e a mãe acreditaram. A mãe só acreditava em Deus. E o pai, na cachaça. Nós, os filhos, acreditávamos na mãe e morríamos de medo da faca entre os dedos do pai. Mas sabíamos que o Brasil precisava de um jeito, de um rumo. Nossa vida até havia melhorado: morávamos numa casa com assoalho e luz elétrica, mas desprovida de banheiro. O grande incômodo era a privada nos fundos do terreiro — um improvisado buraco no solo onde jogávamos as sobras do nosso corpo. Nos dias de calor, o fedor era insuportável. Os vermes borbulhavam na própria febre. Nunca se esquece a imundície que um dia fomos.

Quando entrei na sala do gerente do jornal onde trabalhava, tinha dezessete anos. Naquele início de tarde, entendi como a economia (ou o uso dela) pode destruir um assobio. Seu avô morreu. A frase curta e certeira flutuou perdida entre as paredes, atravessou a ampla janela de vidro, deu voltas pelos corredores e me paralisou. Como? Ele se enforcou. Ligaram da roça para avisar. Não tínhamos telefone em casa.

Com o peso da morte às costas, corri ao ponto do ônibus. Tinha de dar a notícia à mãe — primogênita da família. No trajeto, várias imagens revolutearam na minha tristeza. Mas uma delas jamais me abandonou: meu avô, um italiano vigoroso, mãos grandes e fortes, pedia-me que sentasse em seu colo e começava a assobiar uma canção. O barulho suave tremulava entre os lábios. O som aumentava e diminuía num ritmo tranquilo. Parecia não ter fim, como se fosse o mesmo trecho repetido ao infinito. Nunca soube que canção meu avô assobiava. Mas naquele dia soube que nunca mais a ouviria.

A morte tem pernas longas. Quando cheguei em casa, encontrei a mãe no velho sofá. O rosto afundado nas mãos grossas, chorava um grunhido de animal ferido. Meu paizinho morreu. O diminutivo soava deslocado àquela mulher que sempre me pareceu velha. Mas à época era mais jovem do que sou hoje. Meu paizinho morreu. Assim como o assobio, o lamento está pregado em algum pedaço do meu corpo. Ao lado da mãe, uma de suas irmãs também chorava. A notícia do suicídio já se infiltrava por toda a família. Lá no meio do mato, meu avô balançava os pés na distância infinita até o chão. Quanto mede a distância entre o solo e os pés do suicida?

O suicídio espalhou o restante da enorme família composta por doze filhos. Alguns — como minha mãe — já estavam em C. a ganhar a vida em trabalhos miseráveis. Não ter uma escola perto de casa é a certeza de que as distâncias só aumentam com o tempo. Sem o marido, minha avó tomou o rumo da cidade grande. Nunca se acostumou. Abandonou a pequena roça de colheitas destinadas apenas a saciar a fome. Os filhos a acompanharam feito passarinhos espantados do fio de luz. Alguns se adaptaram à força. Outros retornaram aos grotões da roça e por lá estão até hoje. A sorte não os acompanhou. Pedreiro, um de meus tios despencou das alturas de um prédio em construção e está paraplégico. O mais novo da prole tentou de tudo. Até o dia em que o encontrei a puxar um carrinho cheio de papel velho. Carregava no lombo o cadáver do pai. Tudo por conta do bloqueio de ativos e uma corda.

(O senhor pode se perguntar: o que tenho a ver com tudo isso, com esta famélica história? Simples: os poucos ativos (vulgar dinheiro) que meu avô mantinha na poupança para pagar dívidas se transformaram em desespero.)

Na reunião, mesa cercada por homens de terno e gravata, e mulheres alinhadas, ecoou a derradeira frase do seu anúncio do chamado Plano Collor. Havia firmeza — quase rispidez — em suas palavras. Enumeradas de maneira sucinta, as medidas prometiam salvar o Brasil. Salvar do quê? Para encerrar, a sentença em tons heroicos: “É vencer ou vencer”. E o apelo, sempre ele, às forças divinas: “Que Deus nos ajude”. Não deu certo. Deus não nos ajudou. Ninguém venceu (ou os que venceram preferiram o silêncio). Muitos perderam.

No início deste ano, minha avó morreu. Teve uma vida longa, mais de noventa anos — trinta deles sem o marido. Ao final, voltou para a roça, para o amparo do sossego de uma vida perdida. Voltou para morrer. Os filhos fizeram questão de buscar os ossos (é o que nos resta, além do silêncio) de meu avô para depositá-los ao lado da esposa. Assim, minha avó tinha novamente a companhia do marido. Pena que já não fazia qualquer diferença. O cemitério e o que sobrou desta história estão numa cidadezinha chamada Riqueza, cuja população não chega a cinco mil habitantes. Riqueza! A ironia não nos abandona nem na hora da morte.

Era para ser uma carta. E peço-lhe perdão por quaisquer constrangimentos. Mas acabou virando um amontoado de memórias, frestas, silêncios e perdas. Mas o que é a vida? O que foi a sua vida até aqui? Seu irmão morreu, assassinaram seu amigo careca, seu casamento acabou. O senhor também perdeu coisas pelo caminho, mas está aí de gravata bonita e cabelo penteado. Se a voz já não tem a firmeza de antes, ainda mantém a arrogância do poder. Mas, sinceramente, não me importo com sua vida, não tenho raiva, tampouco desejo vingança. Apenas lamento ter esta história para contar e, além disso, suportar que o senhor, trinta anos depois, declare como quem pede um pingado na padaria da esquina: “Sabia que arriscaria ali perder minha popularidade e até mesmo a presidência”. O senhor tem razão — perdeu algo muito importante: a presidência.

Não dá para comparar: eu perdi apenas um assobio.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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