Amanhã, na batalha, seremos felizes

A vitória sobre o maior rival em uma partida épica fortalece os laços de uma família rubro-negra
Ilustração: FP Rodrigues
01/06/2023

Deixamos boa parte da razão do lado de fora da arena. A metamorfose é inevitável. Lá dentro, os leões são onze animais famintos. Atiçaremos seus instintos com urros, cânticos e gestos (às vezes, obscenos). Estamos trajados com o vermelho do sangue das batalhas impossíveis e trágicas. Em nosso teatro só há espaço para a comédia dos derrotados. Shakespeare nos guia pelos prados em direção a inimigos concretos e vingativos. A tragédia entoada em hinos primitivos ecoa entre a multidão. Empunhamos lanças em forma de bandeiras. Necessitamos de muito pouco nestas searas povoadas de hienas traiçoeiras. Não temos tempo para quixotescas batalhas contra moinhos de vento, monstros imaginários. Quixote, Sancho e Rocinante descansam nas ruas laterais. Não há espaço para insinuações e delírios. Nossa guerra tem horário para começar e terminar. E, obviamente, precisamos vencer. O negro nas listras de nossa armadura reforça a comp0sição de uma turba pronta para a glória. Avante, soldados, amanhã a batalha será apenas um sorriso de alegria ou um esgar de tristeza.

Faz exatos quarenta anos que escolhi uma trincheira. Levados pela mão de um tio analfabeto — um homem rude que nada sabia da palavra escrita; mal conseguia distinguir as cartas do baralho; e se locomovia por C. feito um coelho cego sem Alice para guiá-lo —, fomos eu e um primo. Ele, o menino cujos dentes tentavam rasgar o horizonte, foi morto há alguns anos pela polícia: cinco tiros certeiros — encerrando mais um capítulo das tragédias familiares. Quando chegamos ao coliseu, milhares se amontoavam em arquibancadas de concreto bruto: um lugar meio feio, rústico, desprovido de sutilezas estéticas, com barulhos ensurdecedores para uma criança de dez anos. Estava em território inimigo, no castelo bolorento da madrasta malvada. Logo, o caçador estaria em nosso encalço para nos eviscerar. Após noventa minutos de uma emoção jamais experimentada, decidi: aquela seria minha sina, minha danação e, muitas vezes, uma etérea salvação mundana. A herança a ser repassada à prole.

Em geral, somos quatro seres barulhentos. Já demarcamos nosso território tal cães selvagens. Estamos sempre no alto, com uma vista privilegiada, de onde podemos vislumbrar todos os movimentos em campo, a agitação da horda, as coreografias regidas por maestros gordos, descamisados e, em geral, cobertos por tatuagens. Na balbúrdia do povaréu sobressai uma enorme caveira — nosso brasão dispensa entrelinhas.

Precisamos, em uníssono e com disciplina, guiar nossos soldados pelo tabuleiro em direção ao gol adversário. Jogamos xadrez sem que tenhamos qualquer controle da partida. As regras, algumas vezes, também são sabotadas. A ilusão nos abraça a todos, como se tivéssemos o poder mediúnico de transformar gritos em vitórias. Quando funciona, saímos com uma estranha sensação de dever cumprido.

Não somos iguais. O menino magricela de cabelos indecisos me acompanha desde sempre. Pequeno, chegou a se assustar com a multidão enfurecida. Agora, é mais um enfurecido a gritar a plenos pulmões em formação. Desenha na face todas as possibilidades de um torcedor, estufa o peito de passarinho, balança os braços de louva-a-deus, estica a coluna de pterodátilo e entoa, feito sacerdotes fervorosos num claustro, os cânticos que nos levarão à vitória, à glória momentânea, mas eterna. A certeza o guia; nem a possibilidade da derrota o desanima. Está acostumado a vencer. Já desisti de pedir que evite os palavrões, os xingamentos desnecessários. As mães não têm culpa de nada. É um piá cuja única preocupação é tentar ser feliz diante do gol possível.

A menor — espécie de mascote da trupe espalhafatosa — é a mais criativa. Ainda não sabe as letras das odes sagradas. Improvisa versos, pula serelepe sem qualquer noção das regras que guiam o jogo. Pede explicações, implora carinho em momentos decisivos, ganha um cangote de onde pode avistar com privilégio as hostes inimigas. Ao final, tripudia a torcida adversária, saboreia a vitória agarrada a um copo pegajoso de refrigerante.

A mais velha desfila beleza e elegância em meio aos bárbaros. Sabe que foi esculpida em mármore por um Michelangelo astuto e atento. Não grita, não diz palavras que ofendam as mães alheias, evita gestos desproporcionais a sua beldade entre ogros. Apenas observa, aplaude e olha fixamente para o nosso goleiro, sua paixão desde quando o descobriu. Com sua delicadeza, ilumina a nossa barbárie.

É raro, mas a derrota vem. Um golpe seco em nossas pretensões de invencíveis. Amuados, tentamos disfarçar a estocada mortal do inimigo. A adaga nos lacera todas as partes do corpo. Não deixamos de gritar até o último segundo. Mas é preciso reconhecer quando o impossível é apenas uma ingênua utopia. Às vezes, despejamos todas as nossas frustrações em direção ao campo. Outras, reconhecemos que, mesmo perdida, a batalha nos orgulhou. Na loucura que nos guia, há sempre uma mescla de sentimentos díspares.

No começo da noite passada (ou seria num tempo remoto?), ganhamos do nosso maior arquirrival — um embate a estremecer ambos os lados. A derrota significa a vergonha, o cadafalso imaginário à desolação plena. Fomos apenas em dois: um batalhão reduzido à metade. Acomodamo-nos no alto, demarcamos linhas imaginárias, preparamos o corpo para o cerco. Os braços de louva-a-deus a gesticular feito um pássaro abatido em pleno voo. A ansiedade é inevitável. Preparamos nossos melhores gritos, afiamos a garganta, afinal, é assim que se vencem estas guerras: por meio de urros escondidos em uma ancestralidade pouco racional. Nem pensamos no outro lado (no negócio, nos milhões, nos interesses escusos) — pouco nos importa. Queremos apenas a nossa fatia, a fatia lúdica, bestial e grandiosa deste jogo cuja importância não requer explicações.

Vencemos de maneira inimaginável até mesmo ao mais otimista infante. Abraçamos desconhecidos, abraçamo-nos numa alegria de mil braços. Urramos para o alto, libertamos monstros aprisionados nas entranhas. A caveira a tremer no alto, carregada feito um estandarte vitorioso. Ecoamos um único som: o da vitória. A felicidade, às vezes, parece fácil.

A caminho de casa, no cruzamento de ruas movimentadas, ouço a voz rouca, meio fanha pelo esforço colossal de há pouco: “Ainda bem que eu nasci seu filho e torço para o mesmo time”. Ao longe, ainda é possível ouvir o rumor de mais uma vitória.

Nossa herança será sempre um afeto.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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