A solidão do goleiro em meio à neblina

Uma divertida história ocorrida em Londres entrelaça-se de forma surpreendente com o triste fim do avô no interior do Brasil
Ilustração: Carolina Vigna
01/05/2023

Contou-me a história há muito tempo. Naqueles dias, ele ainda era meu avô; eu ainda era seu neto. Agora, somos apenas uma lembrança a apagar-se na fúria dos dias, no declínio do corpo, no borrão da memória. Era algo estranho, um causo cosmopolita na boca de um homem do mato, embrenhado nas roças de feijão e milho, açoitado pelo bafo quente de bois e vacas, as mãos a chafurdar no chiqueiro de porcos famintos. Havia um goleiro em Londres. Mas onde ficava Londres? A nossa ignorância geográfica nada nos dizia: éramos homens perdidos num mapa sem nenhuma direção definida. Nosso astrolábio é uma biruta errante por mares de mentira.

Encantava-me ouvi-lo: sim, um goleiro perdido entre a neblina em pleno Natal, sozinho, amparado pelo estádio vazio, pelo silêncio do abandono, da trampa dos companheiros de time. Londres, em 25 de dezembro de 1937, foi soterrada por uma neblina fantasmagórica. O espectro de Jack, o Estripador passeava despreocupado. Mesmo assim, Chelsea e Charlton iniciaram o jogo no Stamford Bridge. Meu avô jurava que, antes de aportar na América, passou pela capital inglesa e de lá, como num passe de mágica num circo à beira da estrada, chegou aos rincões do Brasil, onde, mesmo quase analfabeto, escreveria uma tragédia shakespeariana.

Um dia — entre bilhetes sacanas por baixo de mesas ministeriais e lençóis impregnados de sêmen oficial —, alguém inventou de confiscar as poupanças no Brasil — este pedaço de terra desenhado a pinceladas desgovernadas por um maluco sardônico. Muita gente entrou em desespero ao ver suas moedas presas nas garras de um governo que logo escancararia um antro de corrupção, safadezas e conluios obscenos. O desespero chegou às mãos volumosas de meu avô — um italiano angustiado na roça ao sul do promíscuo país. Seu pouco dinheiro surrupiado pela mulher de cabelo encaracolado e voz de hiena engasgada.

Sam Bartram estava debaixo das traves no início do segundo tempo. O jogo seguia empatado. De repente, todos sumiram. O tropel surdo feito ausência. Pensava que seu time, o Charlton, sufocava o adversário em busca da vitória. A batalha travada em terreno inimigo. A neblina densa pouco deixava vislumbrar para além de míseros metros. O silêncio pesado não tirou a concentração de Bartram. Contou em sua biografia que ficava se aquecendo e chegou a permanecer estático na risca da grande área para ver se conseguia vislumbrar algo do jogo. Um nada espraiava-se pela neblina. Não lembro quais palavras, com forte sotaque italiano, meu avô usou para contar esta estranha e divertida história. Mas ainda o ouço sussurrando entre pés de milho, enquanto a redescubro ao ler um romance de um escritor do Cariri cearense que cita a inusitada partida entre névoas. A literatura e sua capacidade de desenterrar nossos fantasmas e alegrias. A vida não é um livro, disse-me alguém certo dia. Respondi com um incômodo e indestrutível silêncio. Sim, a vida é um livro. Às vezes, pessimamente escrito.

Ela apareceu na TV e anunciou o bloqueio de todo o nosso dinheiro. Parecia um rato a lambuzar os beiços num sabuco. Não era uma preocupação. Naquela época, não tínhamos quase nada. Somente o necessário para a fome dos dias. Mas o avô deixava suas economias de roceiro guardadas na fortaleça de um banco. De repente, seu dinheiro sairia apenas em gotas insuficientes. As ruínas de uma vida a escorrer por frestas desconhecidas. O desespero esculpiu a vontade da solidão plena, alojou-se em todas as partes do corpo e encorajou as mãos fortes e calejadas.

Havia alegria ao contar a história do goleiro em meio à neblina. Sacolejava mãos e braços feito um títere de pelicano na ventania. Construía as frases de maneira a deixar a história mais saborosa. Nós, os netos, à sua volta com os olhos esbugalhados e um sorriso fincado nos dentes com cáries a despontar. Quase todos queríamos ser jogadores de futebol. Ninguém conseguiu. O juiz suspendeu a partida, a torcida foi embora, os atletas rumaram aos vestiários, Sam Bartram ficou lá perambulando pela grande área, tal um bicho engaiolado. Nem o silêncio o tirou da imobilidade, da expectativa de um gol, de um contra-ataque adversário. De repente, surge um policial em meio à neblina e o alerta de que é o único ainda em campo. Ruma ao vestiário e a zombaria dos demais jogadores o aguarda.

Pegou uma soga no paiol e caminhou até o matagal que circundava suas terras de pequeno agricultor. As fibras dos músculos a movimentar o corpo rumo à morte. Não deixou bilhete nem vestígios, mas o desespero pelo dinheiro retido no banco é a marca da corda a estrangular sua garganta na solidão do vazio. Não fui ao velório. Era apenas um adolescente buscando um rumo para a vida na cidade grande, afastando-me cada vez mais de uma roça indesejada. Boa parte da família regressou para amparar os demais na imensa tragédia: o corpo do avô a balançar numa árvore. Havia sol e nenhuma neblina se aproximava.

Sam Bartram e meu avô morreram aos 67 anos. Sam Bartram entrou para a história e ganhou uma estátua em frente ao estádio do Charlton, lugar conhecido como The Valley, em Londres. Meu avô ganhou um túmulo de concreto bruto numa cidadezinha ironicamente chamada Riqueza.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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