A roseira

De tempos em tempos, a mãe me estendia um copo plástico com água, era preciso regar a roseira, um prosaico plano para mantê-la viva
Ilustração: Denise Gonçalves
01/02/2021

Plantaram juntos a roseira. Na mínima distância dos corpos não parecia existir qualquer intimidade. O tempo destruíra praticamente tudo. Os filhos gerados no improvisado lar não passavam de um equívoco. Eu os olhava com fingida indiferença. Media cada gesto na manhã ensolarada. A magreza da mãe esculpida pela arte metódica e incansável do câncer. O silêncio do pai construído na vergonha de bebedeiras revestidas de socos, pontapés, gritos e outras vergonhas. Sempre fomos uma tentativa fracassada de família.

Com a morte a zanzar pela casa, a roseira seria uma espécie de acerto de contas despropositado, sem muito sentido. Ela o observava equilibrada num corpo quase indecente. Faltavam-lhe músculos, contornos, energia. Mais tarde, já com os galhos espichados, a roseira esquálida lembraria um pouco a mãe. O pai chegou no meio da manhã com a muda embalada num pacote plástico de mercado. Não tenho certeza se a comprara ou ganhara de algum vizinho. Na intenção de um mínimo afeto, ele pedia para que ela julgasse a profundidade da cova. Uma ajuda desnecessária. Como já não mais falava devido à traqueostomia, apenas balançava as mãos e soltava uns grunhidos — esguichos de palavras incompletas. Era uma biruta sem vento a indicar a direção do abismo. Os gestos significavam que estava logo ali.

De tempos em tempos, a mãe me estendia um copo plástico com água. Era preciso regar a roseira. Um prosaico plano para mantê-la viva. Um dia, eu disse meio sem pensar: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”. A mãe me olhou com espanto diante da banalidade da minha inútil sabedoria. Vivíamos em mundos distintos.

A mãe já não caminhava. Era mais um arrastar-se, uma coisa bem desengonçada. O corpo doente não obedecia aos desejos — transformara-se numa prisão. Levava eternidades até chegar ao portão de metal ordinário. Da porta, eram pouquíssimos metros. As insignificâncias cotidianas transformadas em tormentos. Agarrava-se à grade feito um pedinte. Mas o que pedia? O que esperava? Ficava ali, o corpo meio de lado, prestes a desabar, olhando para a roseira. Como se a planta, ainda sem flores, fosse capaz de algo além de receber água e crescer.

Logo depois de plantar a roseira, a mãe morreu. A roseira estava no canto do muro quando levaram o corpo. Com o fim daquela longa agonia — o câncer é de uma eficiência diabólica —, resolvi estender tábuas sobre o gramado ralo. Um deck de madeira tornaria a limpeza mais fácil. A casa teria apenas um morador. E a roseira?, perguntou o carpinteiro. Deixe aí, disse-lhe, sem maiores explicações. O deck a contornou.

O pai caiu no meio da rua há alguns dias. A ambulância o levou até o pronto atendimento. Quando cheguei, ele estava sentado. Parecia ainda mais triste que de costume. As mãos sujas em concha como se rezasse baixinho. As unhas compridas nos pés encardidos sobressaíam no chinelo. Banhos diários já não fazem mais parte da sua rotina. O aspecto de abandono contrasta com o homem vaidoso e asseado de poucos anos atrás. A idade e o alcoolismo o empurram com velocidade para o fim do túnel. Ao redor, estranhos lhe faziam uma silenciosa companhia. Pelo braço fino, um graveto ressequido, o medicamento pingava em gotas preguiçosas.

As folhas caem com frequência, o vento as espalha pelo deck. A vassoura em atrito com a madeira produz um som áspero. Aqui venta muito. O ar sempre carrega um pó que se infiltra pela casa. É comum os pinheiros atirarem grimpas em nossa direção, como se fôssemos seus inimigos urbanos. É uma guerra desigual. Dizem que é necessário podar a roseira. Nunca sei exatamente a melhor época. Os galhos finos e longos, às vezes, amparam rosas vermelhas. Em geral, não são muito bonitas — faltam-lhes vigor e graça. Alguns botões nem ao menos vingam. Ficam lá dependurados a atestar o próprio fracasso. As flores logo caem, juntamente com as folhas. Algumas pétalas entram nas frestas das tábuas. A vassoura ruidosa limpa tudo. Varro para o canto do deck e atiro ao lixo comum. A roseira cresceu muito, já ultrapassou o limite do muro. Parece querer ir embora.

Todo fim de tarde — quando o sol tomba por trás dos pinheiros —, arrasto a poltrona até o deck para ler ou escrever. A loja entregou a poltrona errada. Ao reclamar, notei que seria muito trabalhoso devolvê-la. Resolvi aceitar a proposta de ficar com ela mediante um crédito para outras compras digitais. Afinal, a poltrona é confortável e bonita. Com o crédito, adquiri uma moderna cafeteira. Em pouco tempo de uso, quebrei-a na pia. Cortei a mão direita. O sangue escorreu debaixo da torneira. Às vezes, a vida não passa de uma sucessão de equívocos.

Não é um ritual. Talvez uma mania. Coloco-me a poucos metros da roseira. Observo os pinheiros e o resto do sol a espetá-los. Conto a quantidade de árvores que estendem uma ampla sombra na rua. O vento balança a roseira. As folhas se espalham pelo deck. Quando as rosas abrem demais as pétalas, despencam vermelhas sobre a madeira.

Uma rosa não é só uma rosa não é só uma rosa.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho