1.
A duração da sombra (2024), de Fernanda Nali
a ave que você
na árvore não vê:
_ouve
Os versos de Fernanda Nali lembram o conhecido jogo de pique-esconde: algo se ocultou, e cabe ao leitor descobrir o que se encobriu. Há um poema belíssimo e emblemático desse jogo: “a ave que você/ na árvore não vê:/ _ouve”. Aqui, o segredo parece aparecer à primeira vista, quando nos damos conta da ausência (presente) de uma letra (h), que transformaria o verbo ouvir em haver. A ave que não se vê na árvore se vê e se ouve no poema, com os muitos sons em /v/: logo, a ave houve, sim — e é “você”, leitor, o convidado a ver e ouvir o que (N)ali há. Por exemplo, a palavra ave que se vê (a olhos livres) na palavra árvore.
Tal estilo (esconder-se) ecoa desde a imagem estampada no título: a sombra. Se sombra é ausência de luz, é porque a luz foi escondida, camuflada, mas virá, conforme sua duração. Não é à toa que uma figura frequente na poesia de Fernanda seja a elipse, que é uma espécie de pista que se deixa para o não claramente dito: “não a procura/ mas a costura”. Por isso, de modo semelhante, fragmentos, flashes, detalhes (feito os sutis itálicos que atravessam os poemas, piscadelas pro leitor distraído) dão solidez àquilo que talvez seja o assunto transversal do livro: o corpo.
Mas não se trata somente do “corpo que abandona a blusa”, corpo que sente “a retenção do beijo” e o “exílio de dentro”, e por isso se entende, em feliz neologismo, uma “nublina”. É um corpo maior: da cidade, do mundo, do real, da linguagem. Há um trecho que traduz esse universo: “não fui a testemunha/ do corpo que jazia morto ao chão/ quente ao sol”. Noutras palavras, se diz: não preciso presenciar a catástrofe para saber que ela faz parte de meu cotidiano. E saber disso afeta (atinge, comove) a poeta: “quem depressa quis a superfície / tanto quanto o oceano fundo”. Daí, dessa dialética entre a superfície e o profundo, deve vir o desejo do jogo de pique-esconde, tramado com a lucidez que o ofício pede e com o compromisso de opor-se à catástrofe e à exploração: “terra quando renda/ ao dono/ tudo/ drena”.
Entre neblinas, sombras, elipses, segredos, os versos de Fernanda começam sua caminhada, em gerúndio (qual seu nome) que é bem mais do que promessa, como se mostra no provocante pique-poema que parodia um clássico de Leminski: um dia, depois, por fim. Os leitores de poesia, embora raça em extinção, estamos sempre atentos, à espera, sabedores de que jogos e gerúndios jamais terminam.
2.
Memorandos para a tribo (2025), de Fernando Achiamé
Ó Deus, onde estáveis quando
estenderam cercas de arame farpado
para o delírio da Solução Final?
Desde o título, Memorandos para a tribo espanta e intriga: a que tribo o poeta destina seus versos? A epígrafe de Mallarmé confirma uma das suspeitas: o poeta pensa em seus pares, não necessariamente poetas, mas sobretudo aqueles com interesses semelhantes, talvez por conta do parentesco geracional. Se memorando lembra algo burocrático, é contudo a força da memória que mais vale e que Fernando vai, incessante, acionar. Em síntese, nos poemas do livro, com mil assuntos e temas, se concentra uma voz que é à vera vivida e portanto experiente, e por isso mesmo carrega um tom impaciente e por vezes trágico, que vem da “madureza, essa terrível prenda que alguém nos dá”, diz Drummond em A ingaia ciência de seu Claro enigma.
A madureza costuma, por ofício, nos impor certas perspectivas. No caso aqui, há uma tensa mistura de nostalgia, de niilismo e de esperança. O clássico sentimento do ubi sunt (à maneira de Manuel Bandeira), daquilo que passou mas retorna em reminiscência, se tinge de angústia (com pitadas irônicas), mas também se atualiza em vigor político (sem panfletarismo), de quem não se conforma com injustiças, em especial no trato com a coisa pública. O contundente poema A concha vazia, em torno da cidade de Vitória, parece condensar passado, presente e futuro — ido, dado e devir.
A terrível prenda de ter atravessado sussuarões permite ao poeta o pertencer a um lugar raro, que é falar, sem travas, nem subterfúgios metafísicos, de Silêncio, de Deus, de Nada. No longo e impactante poema As torres gêmeas, sobre o atentado terrorista de 2001, o impactado poeta apostrofa: “Ó Deus, onde estáveis quando/ estenderam cercas de arame farpado/ para o delírio da Solução Final?”. Se a força divina não alcança socorrer os homens a tempo, talvez o lance mallarmaico consiga: “Ler com calma os relatos de quem escapou/ por um triz, por acaso, coincidência ou sorte:/ um telefonema, gripe, encontro desmarcado,/ filho doente, premonição, viagem imprevista…”. A poesia de Fernando Achiamé lida com o chão da história mas sabe que a vida é também lacunas, imponderáveis, mistérios.
Além de Mallarmé, a memória do poeta nesses Memorandos dá a ver, entre outros, Pessoa, Drummond, Leminski, Brecht, e ainda Theodor Adorno, Heitor Villa-Lobos, Raymond Carver, Hannah Arendt, Woody Allen, Dorothy Parker, e os capixabas Fernando Tatagiba e Sérgio Blank (para este, o belíssimo e comovente Epicédio em 2020). Poetas, filósofos, romancistas, músicos, cineastas circulam nos versos insinuantes e gaios do poeta. Em Fragmentos, humor, metalinguagem e paródia se dão as mãos: “Por que me agarrar a páginas impressas?/ (Sem elas, o Inferno de Dante vira alívio.)/ As que jamais lerei não me afligem/ nem ligo para as que não tenha lido”. Assim caminha a humanidade, feito um velho novelo de lã: ler, não ler, saber, não saber — que diferença faz?
O livro de Achiamé agrada, com toda a inquietude da madureza, a leitores distintos: “A vida é injusta, mas existe música”, diz um de seus versos — e quem não há de entender que cabe à arte o concertar o caos? Existe música, existe poesia. O verso hendecassílabo acima, separado pela vírgula, se faz de dois versos menores em que sobressai um sutil jogo sonoro das vogais: AIÉiU, AeI(i)Ú. Noutras palavras, a forma do verso incorpora aquilo mesmo que diz. O poeta experimenta, experiente, modos de fazer o poema vibrar aos ouvidos de seus distintos pares. Cabe à tribo percorrer esses memoráveis memorandos de Fernando, no trânsito entre o prazer e o pensar.
3.
Perder todo mundo (2025), de Luciana Molina *
Mas na verdade eu amo essa distância que coloco
entre mim e o mundo
Alguns versos de A decisão de me mudar, de Luciana Molina, parecem condensar a dicção e o clima que atravessam o livro Perder todo mundo: “Mas na verdade eu amo essa distância que coloco/ entre mim e o mundo”. Tal distância diminui quando um “observador esbarra em mim/ e eu recordo:/ estamos juntos no mesmo cativeiro”. Os poemas desse livro na verdade querem é prender o mundo e cativar o leitor, esse observador de distâncias.
A um tempo, Luciana perde e prende amantes, namorados, pessoas, que vão e vêm, e tanta fugacidade faz com que os poemas transitem de uma doce melancolia a um delicado humor, em meio a prazeres e frustrações, viagens e quietudes, artes e saberes que Luciana escolhe espalhar em sua ficção poética: Degas, Van Gogh, pintores; Kant, Wittgenstein, filósofos; Fellini, Kieślowski, cineastas; mais a turma da literatura: Borges, Bandeira, Szymborska, Ana C. e, sobretudo, Dickinson.
Para se aproximar da poeta, o leitor tem um caminho: perder-se com ela no cativeiro à vista, em cuja porta se estampa: Perder todo mundo. Com essa turma, perder-se e prender-se não “terá sido/ em vão”. Vamos?
* O livro Perder todo mundo será lançado em breve pela Patuá.
4.
Rondar o indizível (2021), de Nelson Martinelli
não se cura um calo
sem antes pisá-lo
Na orelha ou alhures, me intriga a “nota do autor”, quando se diz que Rondar o indizível não é “um livro sobre psicanálise” e não tem “compromisso com a teoria psicanalítica”. Se poesia não se assenta na dicção do ensaio, no entanto a poesia tem seus modos de elaborar o conceito. É medindo que se ronda, como quer o soneto IV da série cinco sentidos. Mesmo quando se faz visível tão somente pelo efeito que provoca, o argumento está ali, milimetrado, sugerido, condensado, feito metáfora que, provocante, pede decifração.
Os sonetos exuberam: o recalque, o inconsciente, horace meets freud, o tato, o sentir, o perder-se, a onda, o esquecimento, o filho e tantos outros dão a ver como o estalo se torna lucidez, como a ideia se torna linguagem, como a matéria se torna maneira. As rimas são um espetáculo à parte (pertencidas, contudo, ao todo: “límpida/ enigma”, “número/ confundo”, “repete/ ricoeur”), os enjambements nos obrigam a restaurar cacos que se descolam (“falar só convém/ àquele que quer,/ de si, algo inter-/ no extrair (como quem/ extrai uma sílaba/ de um texto e assim/ constrói o seu íntimo):/ o sumo do mínimo.”), as tiradas são saborosíssimas (“não se cura um calo/ sem antes pisá-lo”), mesmo que doam.
Ao contrário do que supõe um leitor ingênuo, o soneto sobrevive e se alimenta da incessante reinvenção de que é objeto. Nelson Martinelli, com Rondar o indizível, ingressa na longa tradição dos sonetistas, articulando — com a graça que vem de A dupla cena (2010) — essa clássica forma poética a um discurso-saber (psicanálise) que muitas vezes se realiza a partir do movimento de rondar o indizível. O paciente aqui experimenta o lugar de analista, sob pena de devoração — o desejo de todo poema é nos devorar. Deixar-se devorar pode ser uma saída (órfica, simbólica, erótica), considerando o prazer que é ressurgir das cinzas a cada virar de página. Não há segredo mais óbvio do que esse para a sobrevivência do leitor astuto: sempre, sempre, sempre virar a página.
Fernanda Nali, Fernando Achiamé, Luciana Molina e Nelson Martinelli são poetas capixabas. Aqui, eles representam não só a poesia feita no estado do Espírito Santo (terra de Rubem Braga e de Sérgio Sampaio, tão pouco conhecida em âmbito nacional), mas todos os poetas que — do Oiapoque ao Chuí — só querem, e isso é o máximo, encontrar leitores, essa espécie ímpar em extinção.