Caça, de Augusto de Campos

Algumas questões sociais na poesia de Augusto de Campos
O poeta Augusto de Campos, autor de A caça
06/12/2015

Caça

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Há quem diga que a Poesia Concreta jamais, ou raramente, produziu poemas que abordassem questões sociais amplas, preferindo elaborar obras formalmente complexas, mas desvinculadas dos grandes problemas nacionais que, desde a década de 1950, nosso país enfrenta. Isso não é bem verdade — para não dizer impossível, considerando que toda e qualquer obra artística já vem impregnada da história e do contexto a que pertence. Não à toa, Theodor Adorno afirmava em Teoria estética (1970) que “os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma”. De todo modo, recordem-se apenas os clássicos Cloaca (1957), de Décio Pignatari; Petróleo (1957), de José Lino Grünewald; Nascemorre (1958), de Haroldo de Campos; e Greve (1961), de Augusto de Campos, poemas em que, explícita e criticamente, a temática social se oferta.

Em Despoesia (1994), na seção Despoemas, Augusto de Campos apresenta o poema Caça, datado de 1989. Composto de dez estrofes de quatro versos cada, se lido de maneira linear, teríamos no poema a seguinte sentença: aos poetas// é fácil ver/ como se faz a farsa/ sob o dis (bis)/ farce de crítica/ marxista renasce/ a face nazifascista/ da polícia polí/ tica e recome/ ça a caça. Nessa versão linear, desaparecem, ou ficam ofuscados, os efeitos verbivocovisuais que a versão vertical (original, única) sugere. Resta, bruto, o recado que se quer: o poema recusa, e acusa, qualquer tipo de patrulhamento ideológico (que, sem dúvida, incorpora também uma censura à proposta estética em pauta).

O período de poder militar no governo do Brasil se encerrou com a saída do general João Figueiredo em 1985. De lá para cá, ares cada vez mais democráticos sopram, embora surtos regressivos, repressivos e direitistas se manifestem com frequência. O poema de Augusto não ataca a “crítica marxista”, mas aquela que se “disfarça de crítica marxista” e, assim, se reveste com a arrogância autoritária típica de uma “face nazifascista”. A forte defesa se faz, irônica, recuperando célebre afirmação do próprio Karl Marx que, logo no início de O 18 brumário de Luís Bonaparte, complementando reflexão de Hegel, diz que a história se repete “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Essa referência importa para se entender não só o afoito “(bis)”, que quebra a palavra “dis/farce”, e a denúncia da “farsa”, que repercute no “farce”, mas o sentido de toda a “caça” — da qual, afinal, poema e poeta se sentem vítimas.

O poema de Augusto não ataca a “crítica marxista”, mas aquela que se “disfarça de crítica marxista” e, assim, se reveste com a arrogância autoritária típica de uma “face nazifascista”.

A primeira quadra, “aos/ po/ e/ tas”, guarda uma distância espacial maior para a segunda quadra, “é/ fáci/ l/ ver”, como se essa pausa configurasse uma dedicatória ou um chamamento “aos poetas”. Se, de fato, poetas, ficará fácil perceber a força subversiva da linguagem que reinventa o verso de forma a dar-lhe sentidos que uma certa crítica — de “versinhos normais”, diria Leminski — não perceberá. Inevitável lembrar aqui toda a querela entre Augusto de Campos e Roberto Schwarz, a partir da publicação do poema pós-tudo (1984), já fartamente discutida em inúmeros ensaios. A ferrenha resistência do poeta concretista, na defesa da liberdade e da singularidade de sua poética, se verifica também no poema que antecede e no que sucede a Caça (1989): em Poesia (1988), vemos um quadrado com oito versos, cada um com exatas nove letras: NÃOÉPHILA/ TELIANÃOÉ/ PHILANTRO/ PIANÃOÉPH/ ILOSOPHIA/ NÃOÉEGOPH/ ILIAÉSOME/ NTEPOESIA; em Pós-soneto (1990/1991), podemos ler um microssoneto, em fontes tipográficas variadas, que galhardamente assegura: quand/ oeu/ sabia/ fazer/// poesia/ ningu/ emme/ dizia/// agoraq/ ueeu/ cansei/// dizem/ ueeu/ sei. No caso de Caça, como estamos acompanhando, a verve do poeta tem alvo preciso: a crítica — e, por extensão, os leitores? — que privilegia uma arte engajada, de alcance popular, em detrimento de um suposta arte elitista, alienada, imanentista, hermética — em suma, concretista!

No livro Marx estava certo (2012), Terry Eagleton se dedica a desmontar alguns clichês atribuídos ao pensamento de Karl Marx, como a ideia de que o marxismo atenta contra a liberdade e a individualidade das pessoas. Na contramão dessa ideia, o crítico britânico escreve: “A sociedade capitalista gera enorme riqueza, mas de uma forma incapaz de colocá-la ao alcance da maioria dos cidadãos. [Tal riqueza] pode ser investida na comunidade como um todo e usada para reduzir ao mínimo o trabalho indesejável. Dessa maneira, poderá libertar homens e mulheres dos grilhões da necessidade econômica para uma vida em que sejam livres para realizar seu potencial criativo. Essa é a visão que Marx tem do comunismo”. Noutras palavras, e pensando no lugar da arte em um mundo próximo a essa visão, uma “crítica (literária) marxista” deveria militar por uma arte com alto grau de elaboração, que recuse facilidades e previsibilidades, pois essas a indústria cultural já se encarrega há tempos de fornecer e multiplicar, em doses midiáticas e mundiais. Por isso, para o poeta, “poesia é risco”.

O poema de Augusto de Campos lança mão da fragmentação de versos, palavras e mesmo sílabas, solicitando do leitor a máxima atenção para que, diante do estranhamento inicial, possa acompanhar e refazer as conexões mórficas, sonoras, semânticas, realizando, quem sabe, o mais difícil salto participante. O olhar que se concentre no poema poderá ver a sutileza que separa o “ista” que completa “marx” e o “sta” que arremata “nazi/ fasci”: a diferença sinaliza a incompatibilidade de uma conduta “marx/ista” e de uma “nazifasci/sta”. Poderá ver também a rima, em forma de paralelismo, entre “polí[cia]” e “polí[tica]”, insinuando similaridade entre elas. Ou ainda a encenação do eterno recomeço da perseguição na quadra final — “ça/ a/ ca/ ça” —, em que a repetição exaustiva de apenas duas letras simula não só a caça em si, mas a obsessão de sua prática persecutória. (A quadra talvez indique ainda, da perspectiva do poeta, um cansaço ou tédio em relação à própria caça.)

O conflito entre realidade e forma, de que fala Adorno, aqui se desenha com nitidez, irônica ou paradoxalmente a partir de um engenho que “disfarça”, fragmenta, mistura palavras e sílabas que constituem versos curtíssimos num poema “longo”, verticalizado, de dez estrofes, que trata, exatamente, de se defender de uma crítica que se disfarça de marxista para, equivocadamente em nome do pensamento de Marx, atacar poetas e poemas que não se alinhem num modo específico e dogmático de agir. Com tal ataque, com tal caça, o que se consegue é fazer renascer uma “face nazifascista”. Resistente, o poema tem consciência de que, para esta face, é uma “caça”. Mas, justamente por se querer arte autônoma e livre — e assim desejar um leitor também autônomo e livre —, o poema faz da caça o próprio objeto de sua rede.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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