Quarta onda?

Os autores Ana Rüsche, Roberto de Sousa Causo e Ramiro Giroldo debatem sobre o panorama atual da literatura brasileira de ficção científica
Ilustração: João Paulo Porto
02/04/2021

Concluindo a brevíssima e informal enquete iniciada na edição de março deste Rascunho, a respeito da Quarta Onda da FCB — mito ou realidade? —, segue o depoimento de mais três ficcionistas-pesquisadores da ficção científica brasileira.

Ana Rüsche
Adoro exercícios de futurologia. Paradoxalmente entregam muito mais sobre o nosso presente histórico e as nossas limitações imaginativas do que sobre o futuro mesmo. Assim, deste imenso período pandêmico, vamos ao desafio. A ideia das ondas parte de uma proposta de Andrea L. Bell e Yolanda Molina-Gavilán na antologia Cosmos Latinos: An anthology of science fiction from Latin America and Spain, de 2003. As autoras contextualizam uma produção mais ampla, da América Latina e da Espanha, reconhecendo “a polinização cruzada e o apoio mútuo entre as diferentes comunidades da ficção científica nessas regiões”, tendo em vista ditaduras e perturbações sociais. A nomenclatura pegou, sendo utilizada por M. Elizabeth Ginway, Ramiro Giroldo e Roberto de Sousa Causo, entre outros pesquisadores.

Dessa forma, haveria uma alteração suficiente no horizonte histórico brasileiro para conseguirmos delimitar uma Quarta Onda? Acredito que a ascensão da direita ao poder, etapa que podemos marcar com o golpe contra Dilma Rousseff em 2015, assinala uma nova guinada na História brasileira e irá perturbar a produção da ficção científica. Livros sobre o autoritarismo voltam ao gosto popular, é a onda das distopias nas prateleiras, a exemplo de Ninguém nasce herói, de Eric Novello. Assim como despontam demandas “por diversidade na literatura especulativa nacional”, como prega o Manifesto Irradiativo, de Jim Anotsu e Vic Vieira, de 2015, ideias se materializam em livros como A cientista guerreira do facão furioso, de Fábio Kabral; Isegún, de Lu Ain-Zaila, e a coletânea de contos Violetas, unicórnios & rinocerontes, organizada por Claudia Dugim.

Quando tudo aqui parece ser desesperança, a busca por um lugar ao sol no mercado anglófono é mais intensa. Exemplos seriam narrativas de Clara Madrigano, H. Pueyo, Jana P. Bianchi, Renan Bernardo e Sérgio Motta em revistas estadunidenses; o lançamento de Fabio Fernandes, Love. an archaeology, pela Luna Press (no prelo); a criação da Eita! Magazine, difundindo literatura nacional em inglês, e o festival internacional Relampeio, cuja segunda edição ocorre de 1º a 4 de abril.

Agora aguardo as pessoas do futuro me dizerem quão fora de ângulo foi meu chute.

Roberto de Sousa Causo
Entre 1957 e 1972, a ficção científica como gênero literário era uma novidade, e um movimento editorial, puxado por Gumercindo Rocha Dorea, amparou os brasileiros. Alguns desses autores sabiam que lutavam para estabelecer o novo gênero — fácil chamá-lo de Primeira Onda. Entre 1982 e 2015, a maioria dos autores da Primeira Onda estava ausente, o país saía da ditadura e os autores-fãs que liam FC internacional — que haviam crescido lendo livros populares, revistas em quadrinhos e vendo filmes — queriam expressar essa influência — mesmo que em fanzines. Claro que era uma Segunda Onda. A partir de 2004, novatos apresentaram-se como um grupo amparado pela nova via da internet. Chamavam os antecessores de dinossauros e declaravam a intenção de atualizar a FC com as tendências cyberpunk, steampunk, new weird, etc. E queriam conquistar o grande público. Fácil chamá-la de Terceira Onda. Mas pensar numa Quarta Onda é mais difícil. Não há um novo meio — a internet veio pra ficar, a mídia móvel não a substituiu. Recorre-se à subjetividade para encontrar a distinção. A tendência atual mais forte é a diversidade e o afrofuturismo, com a cultura pop como o novo palco das guerras culturais e ações de valorização. Mas a tendência já existia com Cristina Lasaitis e Erick Novello, Jim Anotsu e Alliah — desde 2015 o Movimento Irradiativo existe para promovê-la. Seria agradável imaginar (mais como wishful thinking do que como possibilidade real) que estes anos de direita ressurgente inspirassem um ciclo robusto de distopias brasucas, ou que a crise climática assentasse entre nós, inspirando obras relevantes — mas depois de acontecer primeiro no exterior, como tem sido a norma. Talvez a Quarta Onda da FCB se apresente quando alguém realizar a ambição maior da Terceira: sucesso de público. Aí os autores da Terceira seriam os novos dinossauros e o futuro estaria em qualquer tendência com campeões de vendas disputados pelas grandes editoras… Mas é a previsão mais difícil de acertar. Somos apenas dependentes demais, no campo da FC, das tendências que vêm de fora. Se o que importa é o material traduzido, ninguém realmente precisa de autores brasileiros repetindo tendências.

Ramiro Giroldo
Tenho, em diversas ocasiões, apontado que a ficção científica brasileira constitui um sistema literário à margem do canônico. É claro, o sistema dá mostras de precariedade por conta do relativamente pequeno alcance entre o público leitor, mas em determinada medida, tal é a condição da literatura brasileira como um todo — conforme sinalizado pelo próprio pensador que cunhou o conceito de sistema a que me refiro, Antonio Candido. A divisão da nossa ficção científica em ondas, conforme proposto pelo Causo, permite observar os momentos em que o sistema funcionou de maneira bem azeitada — como quando foi travado o positivo contato entre André Carneiro e Gumercindo Rocha Dórea, um autor e um editor da Primeira Onda, com o pessoal da Segunda Onda — e também os momentos em que as engrenagens chegaram perto de travar, diante da escassez de editoras interessadas e, consequentemente, de leitores.

Bem, embora a Terceira Onda tenha como uma de suas marcas o manejo do meio digital para publicar e estabelecer conexões entre autores, leitores e editoras, e tal característica tenha depois se intensificado sobremaneira, definitivamente estamos em outro momento. De novo podemos observar como algumas das dinâmicas da literatura de gênero têm profundas relações com a produção literária como um todo. Não existe, afinal, uma produção artística que consiga se isolar do mundo e das demais produções — mesmo que tente, ela está necessariamente inserida em um contexto cultural mais amplo.

O momento atual é de dispersão, com uma multiplicação de propostas grande o bastante para inviabilizar a delimitação de “características gerais” da nossa ficção científica. Em diversos sentidos, o momento é da diversidade. Sim, a variedade já se observa na Terceira Onda e até nas ondas anteriores, mas hoje não é comum encontrar grandes grupos de autores reunidos em torno de uma proposta estética comum. As agremiações servem, mais do que nunca, para fomentar a leitura e gerar visibilidade, mas dificilmente para unificar diretrizes criativas de maneira consistente. Isso não só na ficção científica.

Estamos, portanto, na Quarta Onda? Para responder, primeiro é preciso rever a noção de sistema literário, verificando de que maneira ela é de fato de auxílio para pensar a produção de agora. Depois, precisamos pensar se estamos em uma onda ou, na verdade, em uma gigantesca e indistinta massa de água que avança ininterruptamente, sem fazer intervalos.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho