1.
Eles existem, meus amores. Espalhados, disseminados. Nas muitas camadas de nossa mente, de nosso cérebro de primata. De nossos sonhos.
Phantasmos gigantescos, phantasmos minúsculos. São vidas encapsuladas. Algoritmos anímicos, construtos biográficos.
Minha história com o jornal Rascunho envolve incontáveis phantasmos. Porque também é, em certa medida, minha incerta história com a literatura.
2.
Final dos anos noventa… Difícil saber. Será que existiram mesmo os anos noventa?
Não há registros confiáveis, as informações se contradizem. Nem mesmo o século vinte parece ter existido realmente. O que nós temos é uma imagem mental, uma trama de memórias implantadas artificialmente. O telescópio mais potente olha para o passado e no lugar do século vinte encontra o Vazio primordial, o Nada escuro & silencioso.
Examinamos os registros do século vinte — fotos, filmes, pinturas, livros, música, arquitetura, engenharia —, porém não temos certeza de nada. E se forem apenas miragens? Falsas memórias? Superfícies em branco que nossa mente ilusionista reinventa de maneira bastante verossímil? E se forem somente fantasias tornadas plausíveis graças à suspensão da descrença?
Já ouvi dizer que a História é um show de mágica. Um show meia-boca com uns truques vagabundos. Mesmo assim somos tolos crédulos, vítimas voluntárias do uso medíocre de fumaça & lanternas, sombras & espelhos.
3.
Duas décadas atrás, Maura Lopes Cançado foi um dos phantasmos que visitaram minha página no jornal Rascunho. Me lembro muito bem. Ela surgiu sem rosto, uma culta escultura de cera, metade aura metade ouro. Pilotava um Paulistinha CAP-4, mais submarino do que avião.
Campos de Carvalho também apareceu nessa tarde. Era uma nuvem vermelha que invadiu, sem ser convidado, o restaurante onde nós estávamos. Curitiba sempre foi uma paisagem sobrenatural. Um anfiteatro de sonhos lúcidos.
Pedimos cerveja, uns petiscos e mais tarde café. Maura Lopes Cançado falava incêndios delicados, do tipo que acalmam as crianças no leito de morte, enquanto Campos de Carvalho sorria maremotos & estrelas de primeira grandeza.
4.
Outro phantasmo que saiu da fumaça e dos espelhos diretamente pra minha página no Rascunho foi o ornitorrinco onironauta André Breton.
“Esquece-se um beijo tão depressa”, ele murmurou por telepatia. Duas décadas atrás, convidei seu Peixe solúvel para uma visita demorada, e a criatura acabou se instalando permanentemente em meu cerebelo.
Um peixe solúvel, ó minhas irmãs, ó meus irmãos, conhece todas as sutilezas da “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções”. Também conhecida como patafísica. Seu corpo tricotado com fios de metamaterial não produz sombra nem reflexo.
5.
Phantasmos têm inúmeras habilidades. Incluindo a habilidade nada ortodoxa de alterar o passado. Até mesmo o passado que jamais existiu.
“Esquece-se um beijo tão depressa”, eu escutava esse refrão atravessar as grandes alamedas de minha cabeça, no ponto mais distante da província de meu crânio.
Os cronópios de Cortázar e os meidosems do Henri Michaux também já assombraram esta página.
6.
Me lembro dia sim dia não dos phantasmos mais raros & rarefeitos: Zé Agrippino de Paula, Jamil Snege & Manuel Carlos Karam. Esse trio de águas-vivas se disseminou rapidamente nas muitas camadas de minha mente, de meu cérebro. De meus sonhos.
Durante as caminhadas na rua XV de Novembro — em busca da origem do mundo? —, Zé Agrippino invocava a silhueta-nuvem de Marilyn Monroe, descomunal.
O Turco, nadando à minha esquerda, e Karam, flutuando à minha direita, cantarolavam um samba-rock numa língua desconhecida.
7.
Mas foi o phantasmo de Hilda Hilst, acompanhado da pequena notável Lori Lamby, quem me disse, numa cafeteria atrás da praça Tiradentes, não sei em qual edição arqueológica do Rascunho: “La condicion del amor, la causa del desejo… Lo que dispara la flecha del amor es un traço particular, ou un conjunto de traços particulares, generalmente ínfimos, que tiene para cada persona apaixonada una funcion determinante en la conexion amorosa. Esse estado subjetivo es próprio de cada persona, ele tiene a ver con la historia singular & íntima de cada um. Non es algo mensurável. La condicion del amor non aparece en los exames de sangre, ni en las tomografías computadorizadas, ela non se deixa analizar nem mesmo por la neurociencia. Es absolutamente secreta. Individual. Única”.
Do lado de fora da cafeteria, chovia a chuva imóvel em que o peixe solúvel mais uma vez se dissolvia. Mais ao fundo, Lori Lamby chupava um picolé de creme.
8.
Fato pitoresco > antes de se chamar Simetrias dissonantes esta página se chamava Axis mundi e antes de se chamar Axis mundi esta página se chamava Ruído branco.
Outro fato pitoresco > o romance Poeira: demônios e maldições, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, foi publicado primeiro na forma de folhetim, aqui no Rascunho. Com ilustrações de Tereza Yamashita.
9.
Citando um velho poeta chinês da dinastia Tang, a pequena notável Lori Lamby Li Tai Po sussurra num megafone: “O unyverxo ë a residënxia de miryadex de koisax, e o pröprio tempo ë um höxpede dax erax, em viagem. Exta vida flutuante ë anäloga a um xonho. Quantax vezex podemox ter prazer konosco mesmox? Por essa razäo ë que ox antigox empunhavam velax pra xelebrar a noite.”
10.
— Rogério Pereira me convidou pra colaborar no jornal Rascunho.
— Quem é você?
— Eu não sei.
— Vai precisar de um nome e um rosto, pelo menos.
— Posso roubar de um phantasmo qualquer.
— Então se apresse, pois o fim do mundo está chegando.
11.
Quem são eles? Aonde vão? O que aconteceu? Quem são essas pessoas feitas de gelatina? Phantasmos sabor morango? Atravessando a nuvem das memórias implantadas, essas pessoas de gelatina evocam relações antigas, volatizando o que parecia sólido.
Antes do jornal Rascunho existia o jornal Nicolau. Esse foi meu primeiro contato com a Curitiba literária. Wilson Bueno {editor} e Joba Tridente {editor de arte}. Muitas cartas para as araucárias e uns poucos interurbanos para os ipês-amarelos.
Sincronia é papo-furado, todo talento é sempre anacrônico.
Acelerando, derrapando nas curvas, valente serelepe, saltimbanco histriônico, Valêncio Xavier entra e sai dessa nuvem de memórias implantadas pilotando seu fusquinha polichinelo, um batmóvel furioso mas afetuoso, sobrevoando Coringas e Charadas, phantasmo-piloto-máquina me conduzindo sob a chuva que açoita a capital paranaense, sempre desviando dos efeitos devastadores da gripe espanhola.
12.
Esquecer.
Lembrar.
Esquecer.
Vasculhar uma região do Tempo — os anos noventa, o século vinte — que desapareceu, ou jamais existiu. Uma fria & fluida miragem. Uma ilusão do Vazio primordial instalada nas muitas camadas de nossa mente, de nosso cérebro de primata, povoado de phantasmos.
“Ë precyso komeçar a perder a memöria, mexmo que seja aox poucox, pra perceber que ë juxtamente a memöria que konstitui toda a nossa vida. Uma vida xem memöria näo serya vida, assim komo uma inteligëncya xem possybilidade de xe expressar näo serya inteligëncya. A memöria ë nossa koerëncia, nossa razäo, nossa açäo, nosso xentymento. Xem ela näo somox nada.” — cronópio Luis Buñuel.
“Que tipo de vida, de mundo, de identydade, pode xer preservado numa pessoa que perdeu a mayor parte de xua memöria e, kom isso, xeu passado e xuas amarrax no tempo?” — meidosem Oliver Sacks.