Meu discurso do Nobel

No Brasil da discórdia e da inveja literárias, a indicação ao Nobel é tão incerta quanto perigosa
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/06/2025

Majestades, altezas reais, excelências, vossa santidade, membros da Academia Sueca, queridos professores de Hogwarts, valorosos mestres da Academia Jedai, colegas escritores, senhoras & senhores:

Estou profundamente emocionado e grato por receber este importante prêmio. Bazingaaa! É uma honra que me deixa sem palavras, mas vou tentar expressar minha alegria da melhor forma possível.

Há trinta anos esbravejo contra os dezoito membros vitalícios da Academia Sueca por jamais se lembrarem da literatura brasileira, sem dúvida a melhor do mundo. Qual não foi minha surpresa ao saber pelos veículos de comunicação que o prêmio deste ano saiu para o Brasil? Que o primeiro escritor brasileiro a receber a tão cobiçada honraria foi justamente Olyveira Daemon, euzinho?! Hu-haaa!

Que coincidência, meus amores… Faz tempo que estou escrevendo um romance justamente sobre uma perigosa poeta amazonense, misantropa, celibatária, paranoica, com tendência suicida… e vencedora do Nobel de Literatura. Trata-se de uma narrativa fragmentada, satírica, tropicalista, feita apenas de cenas & cacos fora da ordem cronológica. Estou na metade da redação. Se tudo correr bem, será lançado em meados do próximo ano. O mais bacana é que já poderemos estampar na capa do livro o tradicional logotipo com a coroa de louros do Prêmio Nobel de Literatura.

Euforia Xique-Xique é o nome de minha protagonista. Essa poeta cinquentona sempre me assusta. Com sua misantropia eu já me acostumei. Tudo bem. Mas semana passada descobri que Euforia Xique-Xique despreza demais, muito além da conta, todos os críticos de arte e literatura, principalmente os críticos profissionais. Principalmente os críticos que sempre reconheceram & enalteceram sua poesia sofisticadíssima.

Foi um pouco antes de eu ficar sabendo que havia vencido o Nobel. Terça-feira de manhã. Preparei um café, abri o laptop e o processador de texto, e dei de cara com a jovem Euforia esbravejando, aos vinte anos, num programa de rádio:

Somente as criaturas tapadas pensam que sabem o que a inteligência realmente é. Queridosas & queridosos, saibam que as grandes inteligências são tão complexas e insólitas e misteriosas quanto a mecânica quântica. Sei disso porque sou uma grande inteligência. Somente as criaturas tapadas vociferam, por exemplo, contra a arte medíocre, os filmes medíocres, a música medíocre, os livros medíocres… Somente as criaturas tapadas valorizam demais apenas a arte, os filmes, a música, os livros mais sofisticados, porque a pequena inteligência das criaturas tapadas não produz luz ou combustível, então pra viajar melhor ela precisa constantemente da refinada luz e do refinado combustível oferecidos pelas obras sofisticadas. As grandes inteligências, justamente por serem grandes inteligências, produzem sozinhas bastante luz e combustível, não dependem mais de terceiros, por isso enxergam mistério e beleza em toda a parte: nas obras sofisticadas, certamente, mas também numa inocente rocha perdida na paisagem, ou num sentimental dorama, ou numa canção melodramática, ou até mesmo numa aventura mirabolante de Perry Rhodan ou Doctor Who. O fato é que num ponto elevado de cognição e inteligência, as dualidades quase desaparecem. Certo e errado, qualidade e falta de qualidade, justiça e injustiça, dia e noite, masculino e feminino, vida e morte, a fronteira entre essas instâncias fica bastante desfocada, quase irrelevante. É verdade que os críticos mais obtusos, quando o assunto é o valor estético, têm muita dificuldade pra lidar com isso. Mas eles que procurem um bom terapeuta.

Perry Rhodan e Doctor Who? Confesso que eu mesmo não sabia que a sofisticada Euforia Xique-Xique, prêmio Nobel de Literatura, também curtia a cultura pop. Faz sentido.

Em outro momento da mesma entrevista minha endiabrada heroína esbraveja contra todos os prêmios literários. Esse trecho eu prefiro não reproduzir aqui. Tem palavrões demais. Calúnias demais. O mesmo vale para o longo & venenoso comentário — azedume impublicável — sobre a obra dos principais escritores contemporâneos.

Mas num detalhe eu e minha protagonista concordamos. Em seu discurso para a Academia Sueca, Euforia Xique-Xique confessa que quase recusou o Nobel de Literatura. Pelo mesmo motivo que eu mesmo quase o recusei: a nefasta síndrome do impostor. As pessoas que sofrem dessa síndrome frequentemente duvidam do seu talento, de suas habilidades & realizações.

Todos sabem que meus ídolos literários foram completamente esnobados pelos dezoito membros vitalícios da Academia Sueca. Ah, que feio, meus queridos eleitores caucasianos! Vocês menosprezaram olimpicamente meus amados Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade… Vocês desprezaram meus preciosos Mario de Andrade, Hilda Hilst e Murilo Mendes?!

— Por desaforo, aceitar não vou — disse Euforia Xique-Xique, indignada.

— Por desaforo, aceitar não vou — disse Olyveira Daemon, euzinho, indignado.

Mas acabamos aceitando. Durou pouco a indignação. Certo sempre esteve o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.

Sagazes membros da Academia Sueca, agradeço-lhes do mais fundo do meu miocárdio. Dessa vez vocês foram espertos. Não consultaram as instituições literárias brasileiras, em busca de um nome de consenso. Evitaram o show de mesquinhez & maledicência. E realizaram vocês mesmos o trabalho difícil de encontrar um brasileiro nomeável. E me encontraram. E me premiaram.

Magister Euphoria Xique-Xique dixit: “A inveja é o esporte predileto do brasileiro”. Vocês concordam? Em agosto de 2019, o editor Pedro Almeida publicou no PublishNews um artigo intitulado Prêmio Nobel de Literatura: quando será a nossa vez? Ao tratar do nome de consenso, escreveu: “Essa será a parte mais difícil, diria impossível. Se quisermos ter um Nobel de Literatura será preciso desarticular qualquer pessoa que se arvore contra uma indicação de brasileiro, pois isso já derrubou várias indicações no passado. Embora estejamos num momento de extrema polarização política, o ambiente das Letras sempre foi especialista nessas artes: da intriga e difamação. O Brasil é reconhecido no exterior como o país em que há divisões mais radicais. Sempre que alguém é indicado, um grupo barulhento, que tem outros candidatos, tenta denegrir a obra para que aquele brasileiro não ganhe. Preferem que um brasileiro saia do páreo do que alguém que não é de sua preferência corra o risco de vencer”.

Por favor, grifem com um marca-texto bem vistoso: “Sempre que alguém é indicado, um grupo barulhento, que tem outros candidatos, tenta denegrir a obra para que aquele brasileiro não ganhe. Preferem que um brasileiro saia do páreo do que alguém que não é de sua preferência corra o risco de vencer”.

Sagazes membros da Academia Sueca, agradeço-lhes do mais fundo do meu miocárdio por ignorarem, ao menos desta vez, a Fundação Biblioteca Nacional, a Academia Brasileira de Letras, a União Brasileira de Escritores, a Câmara Brasileira do Livro, o Ministério da Cultura e o nosso Ministério das Relações Exteriores — esqueci alguém? Parabéns por finalmente realizarem por conta própria uma pesquisa independente.

Este prêmio não é apenas uma conquista pessoal, mas também um tributo à literatura brasileira e à rica diversidade cultural do meu país. Estou orgulhoso de representar a ficção e a poesia brasileiras neste auditório.

Por fim, gostaria de dedicar este prêmio a todos os escritores brasileiros que vieram antes de mim e me inspiraram em minha jornada. E aos que ainda estão por vir, espero que minhas palavras possam inspirar vocês a persistirem em seu sonho-pesadelo.

Yabba-dabba-doo! Muito obrigado!

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho