Manifesto irradiativo

O manisfesto de Alliah e Jim Anotsu para chamar atenção para uma literatura "estranha"
Jim Anotsu, autor do “Manifesto irradiativo”
06/12/2015

Sou Alliah ou Vic. Artista visual e escritora, genderfluid e queer. Desenho e escrevo um bocado de coisas estranhas.

É assim que a carioca Alliah — ou Vic — se apresenta na web.

Seus contos incomuns são batizados com títulos insólitos, que atiçam a curiosidade: Morgana Memphis depois das gungirls, Intervenções de um nautiloide sobre as grafluias do equinodermo resgatador, Metanfetaedro (título de sua primeira coletânea de contos, lançada em 2012, pela Tarja Editorial).

Jim mora no fundo do mar e escreve suas histórias em folhas de couve, às vezes até de beterraba. Odeia dias de sol e chocolate amargo.

Essa é uma parte da minibiografia que o mineiro Jim Anotsu publicou em seu blog.

Jim escreve histórias sobrenaturais, em geral para o público jovem: A espada de Herobrine (2015) e Rani e o sino da divisão (2014), pela Autêntica, A morte é legal (2012) e Annabel e Sarah (2010), pela Draco.

Há quase um ano, Alliah e Jim publicaram na web uma declaração bastante incisiva, exigindo do mercado editorial, da crítica e dos leitores mais conservadores que se atualizem urgentemente.

Perdão. Sempre fui lento. Só há poucas semanas fiquei sabendo dessa declaração pública. Imediatamente entrei em contato com os autores e pedi permissão pra reproduzi-la nesta página.

Em minha opinião, o manifesto de Alliah e Jim extrapola a esfera da literatura especulativa (ficção científica, fantasia e horror). Sua denúncia contra o preconceito de classe, cor e gênero dialoga com a da crítica Regina Dalcastgné e seu grupo de pesquisa (UnB), que denunciou o silêncio dos grupos marginalizados no romance mainstream brasuca.

Manifesto irradiativo

Por mais diversidade na literatura especulativa nacional

PORQUE não aguentamos mais a hostilidade, a violência e a ignorância em espaços que deveriam ser inclusivos, diversos e seguros;

PORQUE não vamos deixar nenhum discurso de ódio passar batido;

PORQUE nossas vivências diversas não são um cantinho escondido na prateleira da livraria ou mero nicho de mercado;

PORQUE pessoas de todas as cores e tonalidades, que são sub-representadas e discriminadas, merecem espaço na literatura especulativa nacional como personagens, escritores, ilustradores, editores e demais profissionais do mercado editorial;

PORQUE mulheres cis e mulheres trans merecem espaço na literatura especulativa nacional como personagens, escritoras, ilustradoras, editoras e demais profissionais do mercado editorial;

PORQUE pessoas trans, incluindo todo o guarda-chuva de identidades genderqueer e não-bináries, merecem espaço na literatura especulativa nacional como personagens, escritores, ilustradores, editores e demais profissionais do mercado editorial;

PORQUE pessoas homossexuais, homorromânticas, bissexuais, birromânticas, panssexuais, panrromânticas, demissexuais, demirromânticas, assexuais, arromânticas e queer merecem espaço na literatura especulativa nacional como personagens, escritores, ilustradores, editores e demais profissionais do mercado editorial;

PORQUE pessoas com diversidade funcional e pessoas neurodivergentes merecem espaço na literatura especulativa nacional como personagens, escritores, ilustradores, editores e demais profissionais do mercado editorial;

PORQUE todos os corpos devem ser representados com igualdade e respeito em sua diversidade, sem gordofobia;

PORQUE pessoas das comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas, rurais, em favelas e demais camadas socioeconômicas marginais merecem espaço na literatura especulativa nacional como personagens, escritores, ilustradores, editores e demais profissionais do mercado editorial;

PORQUE a diversidade de vozes é crucial para a representação e a visibilidade de pessoas marginalizadas;

PORQUE não podemos deixar a representação de vidas diversas nas mãos de um pequeno grupo de privilegiados;

PORQUE celebramos a diversidade de experiências entre minorias étnicas, culturais e religiosas, e queremos que todas as diferenças tenham visibilidade e representação;

PORQUE consideramos estrangeirismo um termo vazio e nonsense, e abraçamos o aspecto multiétnico e multicultural do nosso idioma com a inclusão de palavras e expressões de outros idiomas e dialetos em nossos textos;

PORQUE invocamos referências não-apologéticas dos quadrinhos americanos e japoneses, cinema de arte ou blockbuster, da música emocore ao rap queer, do Movimento Antropofágico, do Manguebeat, da cultura pop televisiva, da deepweb até a cultura da internet de superfície e todas as camadas intersticiais, do afrofuturismo de Janelle Monae, da arte-sabotagem e do terrorismo poético de Hakim Bey, do Manifesto Riot Grrrls, da desobediência civil, do DIY, do caos de nossas rotinas até o vórtice incomensurável do cosmos;

PORQUE abraçamos os folclores, as fábulas e as mitologias indígena, iorubá, hindu, japonesa, chinesa, islâmica, malaia, maori, grega, egípcia, mesoamericana e todos os mitos regionais de todos os cantos do mundo;

PORQUE não estamos aqui para agradar quem acha que a arte pode ser limitada por qualquer critério que não seja a vontade de quem cria;

PORQUE falamos do nosso tempo para pessoas do nosso tempo, conhecendo o passado e nossos precursores, mas com os dois pés firmes no presente e os olhos num futuro que acreditamos pode ser melhor, diverso e colorido;

PORQUE as naves espaciais e o outro lado do espelho devem pertencer a todos, sem distinções;

PORQUE acreditamos no humor, na ironia e no sarcasmo como matérias do fazer na arte e como ferramentas na luta contra um sistema desumano;

PORQUE nossos inimigos têm armas, nós temos todo o resto;

PORQUE nossa arte é nossa arma.

Jim Anotsu & Alliah & todo mundo que é incrível.
12 de Janeiro de 2015

Essa declaração de princípios pode ser lida e assinada na web:

https://manifestoirradiativo.wordpress.com/

Uma carta aberta — na verdade, uma carta-bomba — acompanha o manifesto.

Deflagrando nossa explosão de diversidade

As criaturas evoluem, mudam e se adaptam às condições de seus ambientes. A vida traça seu próprio curso, gerando vidas diferentes e formando novos biomas. O custo disso é que algumas criaturas ficam estacionadas no tempo, alheias ao que acontece ao seu redor. De acordo com a Wikipedia — e nós achamos que essa é a fonte de informações mais punk que existe: “A irradiação adaptativa é um processo evolutivo em que organismos se diversificam rapidamente em uma multidão de novas formas, particularmente quando uma mudança no ambiente faz com que novos recursos fiquem disponíveis, criando novos desafios e abrindo nichos ecológicos”.

A mesma coisa acontece no mundo da literatura de gênero, pessoas diversas têm mostrado seu rosto no mundo — suas cores, amores e aquilo que são — mas essa diversidade não está alcançando as páginas de ficção e o mundo editorial como poderia. O mundo do papel e das telas ainda é dominado por homens cis brancos fazendo o que sempre fizeram e refazendo o que sempre fizeram. É por isso que acreditamos numa forma de tomar isso de assalto, fazendo barulho com o que temos e o que podemos para mudar esse cenário. Queremos que a literatura de gênero evolua, que abrace todas as pessoas do mundo e não apenas uma minúscula parte dele.

Por isso um movimento de ruptura se faz necessário.

(…)

É tempo de uma explosão de diversidade — para deixar os dinossauros do preconceito, do discurso de ódio e da ignorância reduzidos a pó em seus estratos fossilizados; e abrir espaço para uma irradiação de novas criações.

(…)

O Manifesto irradiativo é para todo mundo que já desejou ser aceito, para que saibam que sua representatividade importa.

Você é o motivo de estarmos aqui.

Jim Anotsu & Alliah.
12 de Janeiro de 2015

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho