Manifesto: convergência (Por uma nova ilusão utópica)

Um planeta sem muros é uma impossibilidade prática e teórica
28/02/2018

Um acerto e um erro. No final do século 20 foi decretado o fim das velhas utopias, pois ficou provado que uma utopia é uma ilusão conceitual, uma fantasia da infância. Esse foi o acerto. O carrasco das velhas utopias argumenta que precisamos abandonar urgentemente nossas ilusões se quisermos amadurecer. Esse está sendo o erro. Acertamos ao decretar o fim das velhas utopias, mas erramos ao impedir que uma nova utopia ocupe o lugar vazio em nosso psiquismo coletivo, que está doente. Uma utopia é sempre uma ilusão, mas uma ilusão verdadeira e saudável, necessária para nossa sobrevivência. A ilusão utópica facilita o fluxo social, impedindo a expansão e a permanência de ideias e regimes totalitários. A ilusão utópica é uma necessidade humana, uma poderosa ferramenta evolutiva.

Um planeta sem muros é uma impossibilidade prática e teórica. Muros são necessários: muros protegem, muros preservam. Nossa sociedade é dividida por centenas de muros simbólicos, por poderosos muros políticos, étnicos, sexuais, religiosos, financeiros, culturais, evolutivos. Lutar por um planeta sem muros é uma estupidez romântica. Mais inteligente seria lutar por um tipo mais maleável de muro, feito de outro material simbólico, feito principalmente de aproximações pacíficas. Uma utopia necessária: muros que protejam e preservem, mas não separem as pessoas.

A utopia necessária não difundirá a antiquada divergência desarmônica — guerreira —, mas uma transformação muito mais sutil: a convergência sintônica. Não está na hora de artistas e escritores começarem a modelar o novo projeto de futuro?

Utopia (matriz política) e mito (matriz poética) são abstrações concretas que apresentam a mesma expressão genética. Numa sociedade dividida por muros sintônicos — anteparos que protegem e preservam, mas não separam as pessoas —, estejam certos de que uma nova utopia fecundará e gestará um novo mito, e vice-versa.

A convergência sintônica precisará de um novo mito que seja completo, cuja poderosa substância simbólica entrelace, muito bem entrelaçados, ingredientes das quatro formas básicas de conhecimento do mundo: arte, religião, ciência e política. Precisará de uma nova narrativa inaugural que articule as oposições — vida e morte, masculino e feminino, matéria e espírito, civilização e natureza, razão e intuição, misticismo e tecnologia, tradição e ruptura, erudito e popular — sem domesticar seu impulso original, sem simplificar os traços de complexidade nem dissolver um dos extremos no outro, evitando assim qualquer síntese artificial.

Uma nova utopia e um novo mito exigirão uma nova fraternidade, formada por artistas, escritores e pensadores dispostos a cultivar a convergência e a elaborar coletivamente os fundamentos do novo movimento. O carrasco das velhas utopias disseminou a crença no individualismo, na força do sujeito sozinho, indiferente a qualquer tradição e antipático a qualquer confluência teórica e criativa. Outro erro estúpido. Uma multidão de sujeitos sozinhos jamais conseguirá habitar todas as áreas vazias de nosso psiquismo coletivo. Repito: não haverá uma nova utopia nem um novo mito se não houver uma nova fraternidade.

No campo da arte e da literatura, fraternidade é sinônimo de escola. O fim das velhas utopias artísticas e literárias também foi o fim das escolas-fraternidades que as cultivavam: romantismo, naturalismo, simbolismo, impressionismo, cubismo, suprematismo, dadaísmo, surrealismo, por art, concretismo etc. Os artistas e os escritores contemporâneos evitam formar fraternidades, com medo de perder a liberdade criativa ao aderir a qualquer programa coletivo. Quer reconheçam explicitamente quer não, para esses artistas e escritores o conceito romântico de originalidade continua bastante ativo. Cada um se julga autor de uma obra única e singular, e o carrasco das velhas utopias reforça diariamente essa ilusão individualista. Contrário a essa visão superficial, o filósofo Luigi Pareyson, em Os problemas da estética, argumenta que fraternidade e originalidade genuína não são noções excludentes. Quando alinhadas, são noções que se alimentam reciprocamente, fortalecendo-se. A singularidade verdadeiramente original não rejeita a comunidade e a comunidade não enfraquece a singularidade verdadeiramente original.

Suspeito que uma nova utopia e um novo mito, para realmente merecerem o atributo de novo, precisarão enfrentar a crença mais nefasta do nosso tempo: o antropocentrismo. Não se trata de extirpar essa crença tão antiga quanto o próprio sapiens, isso seria ridículo, seria como tentar extirpar para sempre a sombra das pessoas. Trata-se de enfraquecer essa noção chauvinista, que justifica, por exemplo, a devastação ambiental. Todas as formas de vida, da mais simples à mais complexa, são intrinsecamente narcisistas, e o antropocentrismo é a forma coletiva do narcisismo humano. Hoje sabemos que o sapiens não ocupa a posição central no universo. Mas no dia a dia nosso narcisismo antropocêntrico apaga essa verdade tão inconveniente, espalhando doenças intelectuais e emocionais. Há bilhões de anos o universo teve um centro, mas durou muito pouco, e garanto que esse centro fugaz não se parecia em nada comigo ou com vocês. Uma nova fraternidade, formada por artistas, escritores e pensadores dispostos a cultivar a convergência, precisará manter visível na teoria e na prática a certeza de que a suprema beleza estética e existencial está inteira em nossa descentralização evolutiva, política e cosmológica.

O narcisismo surdo a críticas, o ego cego aos valores mais valiosos da vida, apaixonado apenas pelo brilho trivial das medalhas e dos falsos sorrisos… A nova fraternidade precisará enfrentar — sem jamais pretender vencer, pois ela é invencível — a força centrípeta da vaidade artística e literária. Força que sempre arrasta e esfacela o talento mal orientado, antes que o infeliz tenha tempo de se fortalecer. Muito cuidado: “Um escritor nunca esquece a primeira vez que aceita umas moedas ou um elogio em troca de uma história. Nunca esquece a primeira vez que sente no sangue o doce veneno da vaidade e acredita que, se conseguir que ninguém descubra a sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de lhe dar um teto sobre a cabeça, um prato quente no fim do dia e o que mais deseja: o seu nome impresso num miserável pedaço de papel que com certeza viverá mais do que ele. Um escritor está condenado a recordar esse momento, porque nessa altura já está perdido e a sua alma tem preço”. [Carlos Ruiz Zafón]

Outra doença contemporânea que uma nova utopia e um novo mito precisarão enfrentar será a infantilização cultural, promovida pela indústria do entretenimento. Uma distorção severa em nossa percepção crítica está aumentando exponencialmente uma estranha confusão valorativa: obras de menor valor artístico ou literário têm sido confundidas com verdadeiras obras-primas. Artistas e escritores medianos, quando não medíocres, têm sido confundidos com verdadeiros mestres. A indústria do entretenimento alimenta a infantilização cultural, confundindo produtores, instâncias legitimadoras e consumidores. As obras e os profissionais do entretenimento, menos sofisticados, desempenham uma função social importante, mas não devem ser promovidos artificialmente a grande arte e a grandes artistas. Essa confusão valorativa favorece apenas o caixa da indústria. Essa confusão valorativa não faz bem à arte e ao artista, muito menos às obras de entretenimento de qualidade e aos profissionais talentosos que as produzem. O popular e o erudito são categorias distintas, que podem até dialogar, beneficiando-se mutuamente, mas cada qual tem seus critérios e sua escala de valor, que estruturam sua identidade indissolúvel.

A infantilização cultural vaza cotidianamente, preenchendo outros compartimentos da vida social e enfraquecendo debates e reflexões. No plano da administração pública, políticos despreparados são confundidos com verdadeiros estadistas, enquanto partidos inconsistentes, sem raiz ou substância, chegam ao poder de maneira atrapalhada e realizam perigosos projetos de governo. No plano da pesquisa acadêmica, dissertações repetitivas e teses anódinas são confundidas com investigações científicas originais e consistentes, apenas porque os pesquisadores souberam usar apropriadamente o discurso impessoal e as normas da ABNT.

[Manifesto em progresso]

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho