A covid-19 acabou levando Sérgio Sant’Anna, um dos maiores escritores do país. Era dono de uma narrativa inventiva, de linguagem lapidada, segurando com mão firme o seu narrador. Para recordá-lo, republico aqui um trecho do meu ensaio O conto brasileiro do século 21, publicado inicialmente neste Rascunho e depois em livro. Entre as cinco vertentes do nosso conto que comento no ensaio, incluo um conto dele primoroso na terceira, a das narrativas fantásticas. Eis o trecho do ensaio: “3) a vertente das narrativas fantásticas, na melhor tradição do realismo fantástico hispano-americano, às quais se podem juntar as de ficção científica e as de teor místico/macabro — Talvez nunca tenha tido muito êxito, entre nós, o conto macabro. Mas, na mão de um bom escritor, ele pode render. Embora contendo pouca coisa de novo, de inventivo, o longo conto O voo da madrugada (o livro com este título obteve o Prêmio Jabuti de 2004), do carioca Sérgio Sant’Anna, é bom, tem fôlego, poesia, tensão, densidade. São muito bem tecidos os planos do real e do insólito, uma vez que se trata de uma narrativa fantástica (isto se dermos crédito à informação final de que o protagonista, também narrador da história, já de volta para o seu apartamento em São Paulo, é na verdade um ‘deles’, ou seja, um dos mortos no acidente aéreo em Roraima). No conto, chama primeiro a atenção o aborrecimento, a natureza entediada do protagonista. O enfado, provocado pelos permanentes deslocamentos, pelas viagens a serviço da empresa onde trabalha, é inicialmente a sua principal marca. Um tipo, ‘de vida errante e burocrática’, que detesta o seu cotidiano ‘árido’ na cidade de São Paulo. Mas, estando em Boa Vista e antecipando a passagem para pegar um voo extra para São Paulo no qual estarão os parentes e os corpos das vítimas de um desastre aéreo, não poupa palavras aborrecidas e, mesmo, preconceituosas, contra o lugar. Boa Vista é apontada como uma ‘cidade perdida nos confins mais atrasados’. O protagonista de Sérgio repele as imagens do país real e pobre. E por quê? É que a visão de mundo do personagem remete à de um tipo metropolitano, da classe média, buscando em tudo o conforto, e que pensa que o Brasil é apenas aquele dos grandes centros. Um tipo que, com a cabeça no Primeiro Mundo, tenta desconhecer ou ser indiferente às mazelas do Terceiro. Tenta desconhecer ou ser indiferente ao Brasil amazônico, sertanejo; enfim, ao Brasil atrasado”.