O ficcionista, intérprete da natureza humana (1)

Narrativas ficcionais, se bem executadas, propõem ao seu leitor uma longa meditação
Julio Cortázar por Ramon Muniz
01/07/2025

A escrita do romance, diz Valter Hugo Mãe, em entrevista ao site Vacatussa, é uma “longa meditação”. Eu acrescentaria: o romance, se bem executado, propõe também ao seu leitor uma longa meditação. O conto, do mesmo modo. Muita coisa reverbera na gente após a leitura de um grande conto. Porque, como queria Julio Cortázar, um grande conto atinge a nossa sensibilidade e a nossa inteligência. Impressiona-me muito, até hoje, por exemplo, um conto do próprio Cortázar — A autoestrada do sul (que está no livro Todos os fogos o fogo, de 1966). Para mim, é um conto profético, que consegue dimensionar o que é o automóvel, ou o valor que ele representa para a nossa sociedade. O automóvel é símbolo de status, diferenciador de classe social? Sim. Os indivíduos, em seus automóveis, incomunicáveis, expressariam um tipo de solidão moderna? Sim. A aposta no automóvel, que foi feito para dinamizar a vida, para o transporte rápido, não é uma espécie de contrassenso nas grandes cidades de hoje, com a imobilidade e o estresse dos grandes engarrafamentos? Sim. A necessidade de afeto, de solidariedade para enfrentar uma situação-limite que a todos atinge (no caso do conto, um engarrafamento que traz dissabores e impeditivos para a sobrevivência dos motoristas), não é da condição humana? Sim. Sentimos nostalgia dos afetos perdidos, algo tão bem configurado na narrativa com o engenheiro do Peugeot 404? Sim. Na vida atomizada na grande cidade é rarefeita a reunião de pessoas que, efetivamente, se gostam e sentem a indispensável necessidade do bom convívio? Sim. São indagações, entre outras, que A autoestrada do sul me propicia.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho