A estrutura de Bestiário, de Cortázar (2)

Prosseguindo na abordagem das cenas do conto Bestiário, de Julio Cortázar
Julio Cortázar, autor de “Todos os contos”
01/09/2009

Prosseguindo na abordagem das cenas do conto Bestiário, de Julio Cortázar. CENA 3: Traz um outro elemento importante do conto — a alegoria do formicário. Isabel em Los Horneros, como indica o próprio narrador, é apenas “um brinquedo de verão para alegrar Nino”. As duas crianças, Isabel e Nino, para fins de “pesquisas”, passam a criar formigas num “grande e profundo cofre de vidro” que Luís lhes empresta. Isabel tem, visivelmente, mais interesse na “experiência”. Presta mais atenção e anota os hábitos das formigas (lembrando agora o sentido medieval do termo “Bestiário”, ou seja, o catálogo onde monges registravam informações acerca do aspecto, do habitat e da alimentação de animais, produzidas em forma de fábulas, de narrativas moralizantes). Isabel estuda o movimento das formigas e percebe, por exemplo, a fúria delas, “acessos de raiva e veemência” (tão parecidos com o temperamento de Nenê); observa-lhes o trabalho (Luís trabalha o dia todo em seu escritório; Rema também trabalha muito, é uma espécie de “operária” da casa — por isso Isabel aponta no formicário a “rainha” [“Acho que esta é uma rainha, é grandíssima”], chamando a atenção de Rema, algo que funciona como uma espécie de ironia à situação desta na casa); observa-lhes as permanentes “concentrações e debandadas” (a lembrar os próprios movimentos da família, que se reúne para a ceia e depois se dispersa, indo cada um para a sua tarefa no interior da casa). Isabel vê também nas formigas um “alvoroço” (antecipando aqui talvez o que ocorrerá na cena final). A sociedade das formigas, assim, aos olhos da menina, se assemelha à sociedade dos homens, à própria dinâmica da família Funes. E vice-versa. Isabel imagina, por exemplo, “um tigrinho […] rondando as galerias do formicário”, ou seja, a ameaça real aos habitantes da casa (o tigre) é transposta para o habitat ou universo das formigas. Isabel também “sente” o formicário como “um horror de patas querendo sair” — imagem que funciona como um importante índice, remetendo ao desfecho do conto, ao momento em que Nenê está nas garras do tigre. CENA 4: Jogo de tênis de Isabel e Nino na parede ao lado do riacho. Isabel descontraída, intensa em suas férias, como se vivesse “a felicidade do verão”. De repente Isabel, “com raiva, com alegria”, manda a bola na vidraça do escritório de Nenê. A reação deste é intempestiva: “Fedelhos de merda!”. A cena caracteriza o destempero e virulência de Nenê — e ajuda a compor a aversão de Isabel a ele. CENA 5: Outro monólogo de Isabel, à hora de dormir. Novamente o narrador volta-se para a interioridade da menina, mostrando como ela viu o ataque agressivo que Nino sofre de Nenê no episódio do jogo de tênis. Mostra os sentimentos antagônicos da personagem, de apego/afeto por Nino e Rema, de desprezo por Nenê. A virulência e covardia de Nenê (que afinal agrediu uma criança) doem na alma de Isabel: “Isabel piscava [o que sugere um choro às escuras] para apagar as imagens”. A cena acentua a intriga entre Rema e Nenê, o conflito maior instalado em Los Horneros. Mostra a impotência dos mais fracos (Rema, Nino e a própria Isabel) diante da personalidade vigorosa e ríspida de Nenê. A agressão de Nenê praticamente toma o monólogo da menina, de tão imperiosa (e tirânica) que a figura dele, no ambiente da estância, representa agora para ela.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho