Dr. Fritz operando

Fritz enfia agulhas, extrai o líquido, pergunta há quanto tempo ele tem aquilo
11/11/2016

07.05.1997
Acabo de vir da Penha de uma sessão com o Dr. Fritz. Na crônica Um outro Brasil havia me referido ao encontro entre ele e Sapaim na casa de Cesarina Riso. Ele nos havia convidado para vê-lo, porque Marina está com problemas na coluna.

Fomos com Cesarina.

Junto a um imenso prédio de fábrica abandonado, um galpão pobre, com vidros quebrados, paredes mal caiadas, diversos ambientes, amplos, todos abertos, uma multidão. Já nas ruas, barraquinhas de tudo.

Entramos, colocamos o carro e avançamos entre centenas de pessoas em pé ou sentadas e em cadeiras de roda. Os assistentes do Dr. Fritz, por causa da Cesarina, nos deixaram ir para junto dele, ver de perto seu trabalho.

Alguns enfermeiros e instrumentadores e um carrinho contendo injeções. Fritz (na vida civil: Rubens), agora sem óculos (diferente de quando o vimos na casa de Cesarina), vai se aproximando das pessoas, perguntando coisas e pegando rapidamente seringas e injetando o produto no olho, na coluna, na barriga, nos joelhos. Uma rapidez incrível. No caminho em que ia passar, dezenas de injeções já preparadas. Perguntei a um assistente o que era o conteúdo das injeções:

“Eu sabia que o poeta e cronista ia nos perguntar. Estou também com o espírito e pressenti. A injeção tem Água Raz, iodo e água”.

E falou rindo:

“Se alguém injetar isso numa pessoa fora daqui, ela morre”.

O assistente contou rapidamente (pois tudo ali é rápido) que tempos atrás, ele estava praticamente paralítico. Agora trabalha ali ajudando. Um outro assistente diz que Fritz lhe operou a carótida inflamada e que está ainda em recuperação.

Nos aproximamos acompanhando sempre o movimento em torno do Dr. Fritz. As pessoas em quatro filas. Ele indo ao encontro delas, irônico, brincalhão. Disse: “O difícil não é operar, o difícil e achar um bom instrumentador. Esse aqui é ótimo”, enquanto se refere ao ajudante e opera um homem alto. Este levantou a camisa. Havia um calombo perto do umbigo, um tumor, creio. Fritz passa um aparelho de barba nos seus pelos na região da barriga, como se faz no hospital.

Depois pergunta: “Você quer ser operado em pé, sentado ou de cabeça para baixo?”.

Dito isso, enfiou uma coisa cortante, abriu um talhão de uns cinco centímetros, e começa a fuxicar lá dentro com alguns ferros. Depois lhe passam as pinças. Um outro assistente ajuda. Ele mexe sem nenhuma delicadeza, corta um pedaço de carne vermelha de uns dois centímetros, alça-o para que as pessoas vejam. Continua brincando. O paciente não demonstra o menor traço de dor e conversa com o médico, que às vezes para um instante, fala, volta a tirar mais um pedaço de tumor. Ao final ainda diz: “Agora vou botar seus intestinos para dentro”. Empurra-os com gazes que tem nas mãos, as mesmas que usava e jogava-as no carrinho.

Um garoto de uns dois anos (no colo de um irmão adolescente). Fritz pergunta ao mais velho sua idade. Pede que explique à sua mãe que não pode curar completamente o menino, ele vai apenas melhorar, porque quando nasceu entrou ar no seu cérebro. Dá-lhe algumas injeções rápidas.

Outro cidadão está levando injeções. Fritz me pede para escrever a receita para ele: Antanax, plasil e mais outros dois nomes que esqueço. Diz também a posologia.

Pergunta-nos se queremos nos curar/operar algo. Não, digo, viemos apenas olhar.

Um outro indivíduo grande leva uma injeção na coluna. Custou a entrar. Teve que recolher, trocar a agulha. Depois, passou por mim dizendo que doeu um pouco e tinha dormência ou câimbra.

Outro levanta a barriga cheia de esparadrapos, mostra radiografias, explica a doença. Fritz diz: “Um paciente que sabe mais que o médico”. Dá-lhe algumas daquelas injeções e manda-o voltar na outra semana.

Outro com um imenso calombo, infecção no cotovelo. Fritz enfia agulhas, extrai o líquido, pergunta há quanto tempo ele tem aquilo, muito tempo, responde. Finaliza dizendo: “Vai ficar bem”.

Por um momento vai à sala de cirurgia, imensa sala com portas abertas, com umas pequenas camas lá dentro. Volta de lá e continua o trabalho aliviando as filas.

Uma mulher com dor na coluna. “Mas com esses dois parafusos é claro que tem que doer”, diz. Abaixa sua calça comprida, agarra um pedaço da bunda, dá três daquelas injeções na coluna dela, manda-a girar, se contorcer e diz para voltar que vai tirar-lhe os parafusos.

Cesarina está na fila dos que vão ser atendidos. Perto dela uma mulher com a crônica recortada que eu havia escrito sobre Dr. Fritz.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho