Buenos Aires, Paris, Palácio da Alvorada

Um prêmio, uma máquina e o desleixo de Borges como diretor de biblioteca
O uruguaio Eduardo Galeano.
29/09/2016

18.02.1995
Esta semana, com Eduardo Galeano na FBN e no restaurante da Colombo, no centro do Rio. Ele pesquisando sobre Ademir da Guia, Leônidas da Silva.

27.02.1995
Buenos Aires. O embaixador Marcos Azambuja convida-me a dirigir o Centro de Estudos Brasileiros em Buenos Aires: US$ 7.500,00, mais ajuda de moradia. Venho pela rua (ontem) olhando as varandas dos apartamentos, o chão quase marmorizado e limpíssimo das calçadas, as ruas. Pensando em como será viver, morar aqui com Marina. Poderia trocar o Rio, a paisagem (e os perigos), nosso apartamento por tudo isto? Trocar a FBN, seu cansaço e prestígio por esse refúgio?

Ontem, Hector Yánover contou-me horrores da Biblioteca Nacional da Argentina, em Buenos Aires, que ele dirige. Tem só 700 mil livros. Se somar jornais e iconografia, talvez chegue a 2 milhões. Tem menos de 200 funcionários hoje. Conseguiu recursos para informatizar a BN. Usou até soldados do Exército no trabalho. Não tem bibliotecárias suficientes. Revela que Borges foi um descalabro: chegava tarde, lia os jornais lá pelas 11 horas, recebia amigos e deixava que roubassem livros.

14.06.1995
Semana passada deram-me o Prêmio de Marketing da Associação Brasileira da Marketing pelo trabalho feito na FBN. Outros homenageados: BarraShopping, O Globo, Ricardo Amaral, Fiat, Rubens Cesar Fernandes (Viva Rio), etc. A escolha, que me surpreendeu, veio de um questionário enviado a 2 mil pessoas no país. É importante, porque veio de fora da área literária. A festa foi no Copacabana Palace. Miele comandou o show. Devo fazer uma crônica a respeito.

02.07.1995
Paris. Jantar na casa de Alice e Jorge Raillard. Ela, tradutora de Jorge Amado; ele, crítico de arte. Alice tem uma casa perto do Castelo de Loumarin, junto da estrada onde morreu Albert Camus[1].

Conheço Yves Marin, secretário-geral do Centro Nacional do Livro, que tem orçamento de US$ 20 milhões para fazer a divulgação do seu país; 40% é para compra de livros para as bibliotecas do país. Aceita a ideia de que o Brasil possa ser o tema do Salão do Livro em 1997[2].

02.07.1995
Exposição de Marc Chagall no MAM de Paris. Anoto algo: “Ma connaissance du marxismo se bornait à savoir que Marx était juif et qui avait une longue barbe blanche”. E reconhecia que sua arte não ia agradar a Marx. E sobre suas relações com o sistema soviético, lembra a conversa: “Je disais a Lunatharvksy: ‘Surtout ne me demandez pas pourquoi j’ai peint un bleu ou en vert et pourquoi un veau se voit dans le ventre de la vache” , etc.

E continuava ironicamente dizendo que Marx poderia ressuscitar para explicar isto. (Ma vie/M. Chagall, Ed. Stock)[3].

23.08.1995
Almoço no Palácio Alvorada com FHC para comemorar o lançamento de um livro/seminário que ele fez no Itamaraty. Farei uma crônica sobre essa visita ao Palácio. Acabei me sentando à mesa de FHC e via que, em outra mesa, Weffort estava meio incomodado. Vontade de falar certas coisas para o presidente, mas achando que não era apropriado.

Por outro lado, sucesso a máquina Docutech da Xerox na 7ª Bienal do Livro do Rio. Filas. Repercussão em Brasília. Todo mundo maravilhado. Pode-se imprimir um livro em cinco minutos. Dou entrevista no Jô Soares. Venho da  Bienal. Um sucesso. A FBN deu um show de competência no belo stand montando junto com a Xerox. Funcionários entusiasmados. A entrevista ao Jô foi ao ar e aumentou a afluência à FBN. As pessoas cumprimentavam, queriam autógrafo nas edições da Docutech. Carinho. Orgulho nos olhos deles por verem uma instituição do governo funcionando bem.

Uma grande coisa foi a visita à Bienal dos meninos da Febem que trabalham na Biblioteca. Ganharam um dinheiro para comprar livros, foram de kombi/ônibus, participaram; e na volta ainda compuseram um rap em que o livro e a Bienal eram o tema. Entre as tarefas, pedi que fizessem uma composição sobre a experiência e premiei o melhor deles numa cerimônia no gabinete.

Fui ao Municipal com Marina assistir à La Traviata. Olhava de lá a FBN toda iluminada. Bela.

NOTAS

[1] Passamos, Marina e eu, por Loumarin, visitamos a sepultura de Albert Camus, muito simples. Na UFMG fiz um trabalho de estágio sobre A peste.

[2] O Salão foi em 1998. Acabei indo a convite do governo francês e fiz apresentações coordenadas por Sérgio Bourgea. Marina participou de um mesa sobre Clarice Lispector, com Hélène Cixious e Michelle Borjea.

[3] Ver Cenas parisieneses, O Globo, 04.07.1995.

 

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho