Corpo incômodo

Toda a poesia de Hilda Hilst trabalha com a passagem do ser para o não ser
Ilustração: FP Rodrigues
31/05/2018

Embora tenha escrito ficções e teatro, Hilda Hilst (1930-2004) foi em sua essência poeta, e se valia dos meios da poesia no campo da prosa. Sua obra mais narrativa, O caderno rosa de Lori Lamby (1990), que inaugura uma fase desbocada, é antes de tudo uma história infantil de natureza poética-pornográfica. Foram 24 títulos autônomos de poesia, dez de narrativas, oito de teatro (só um publicado) e um de crônica. Para além desta comparação quantitativa, o que se percebe é que o verbo hermético de seus poemas implode a fluência da prosa realista.

Assim, dá para dimensionar a importância do lançamento, pela primeira vez, de toda a sua poesia — Da poesia, com livros do início da carreira, que nunca tinham sido reeditados, e que permitem agora construir um retrato de corpo inteiro de uma linguagem.

Tomando como base a única reunião (incompleta) que a autora fez de suas coletâneas, Poesia (1959-1979), nota-se que ela entende Roteiro do silêncio (1959) como marco de sua obra madura, negando os três livros anteriores. A leitura, em ordem cronológica, de sua produção, revela, no entanto, fases bem distintas de seu discurso.

Os livros que ficaram de fora apresentam uma jovem liberal em estado de admiração por homens — como amantes e como escritores. São cantos erotizados de um amor ingênuo, em congraçamento com essas figuras masculinas, diante das quais ela assume uma condição de companheira, com uma estatura menor: “Na hora da minha morte/ estarão ao meu lado mais homens/ infinitamente mais homens do que mulheres”. O poema, dedicado a Vinícius de Moraes, dá o tom deste volume — Balada do festival (1955) — e dos dois anteriores. Seu grande tema, a morte, já aparece aqui, mas a mulher que escreve em primeira pessoa biográfica prefere o tom e as formas mais suaves, em poemas que são subprodutos da festa juvenil do corpo, em que ser poeta é ser muito amada. Sua condição menor em relação aos grandes discursos masculinos e à figura dos amados surge no último verso do mesmo poema — “Não era um mau poeta a pequena Hilda”. O adjetivo mau e o substantivo (masculino) poeta não sofrem a mesma flexão de gênero do adjetivo pequena, que qualifica um nome próprio que se vê como menor.

A partir de Roteiro do silêncio, o verbo feminino e sua verve crescem. Ela continua ainda a se ver como poeta e amante, agora dentro de um idioma muito mais tensionado. Há a entrada de elegias, odes, trovas, sonetos, referências medievais, dentro de um ideário atemporal de literatura — marca da Geração de 45, movimento de reação ao Modernismo brasileiro. A recusa do cotidiano se recrudesce e o hermético se adensa, colocando Hilda em uma tradição eterna de linguagem. Escrever em uma língua não referenciada historicamente é uma forma de tentar anular a morte.

Ela deixa de corresponder às imagens agradáveis da jovem bela que também escreve: “Eu não sou aquela/ que o teu sonho pedia”. Fala na madureza das raízes, no amor antigo, na linguagem como elemento que solda o agora ao sempre. O seu diálogo é com o que ficou retido em outras eras, em uma voz com profundidade temporal: “Se falo/ é por aqueles mortos/ que dia a dia/ em mim ressuscitam”. Ou: “Os mortos ressurgiram e cantaram:/ Se a perfeição é a morte/ talvez por isso imortais/ há muito que existimos”.

Nesta fase de descoberta das profundezas místicas de ser, cantar é uma forma de resistir à brevidade de tudo, com vozes sobrepostas, com um antes a se manifestar como agora. Com isso, o eu se vê em uma missão, positivando esta maneira de escrever.

A partir de 1962 (Sete cantos do poeta para o anjo), período de politização da literatura brasileira, o hermetismo aumenta e a linguagem de Hilda se faz desistência. Não quer significar nada. O sentido é um acidente, e escrever é abrir-se para que ele possa, ou não, acontecer.

Quando Hilda perde em definitivo o pai (o poeta Apolônio Hilst, 1896-1966), internado por problemas mentais desde a década de 30, o tempo se transforma em inimigo não só da linguagem; ele também lhe tira a pessoa mais amada, como a autora confessa em várias entrevistas. Apolônio vai se tornando a representação do homem ideal, fora do plano terreno: “sempre procurei ser meu pai. […] Meu pai reunia as qualidades que permanecem para mim como modelo de virilidade: a intensidade, a força física, a inteligência”. A problemática da morte ganha uma verdade biográfica que altera sua linguagem. Ela toma um lugar central, e toda a festa do corpo súbito é passado, vivida no plano da memória e no plano da idealidade, onde a poeta procura o homem imaterial, o ser amado que é uma ideia, uma aspiração.

Dá-se então a passagem do culto do poeta (substantivo masculino) para as descobertas da poeta (substantivo feminino): “Antes de ser mulher sou inteira poeta”. Para ela, o amado é um ser que só existe como linguagem. Está conciliando o seu desejo de amor com a ausência do pai, modelo etéreo do outro masculino. Em Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), sua coletânea mais extensa e complexa, há uma parte dedicada a grandes personalidades do pensamento — equivalentes do amante ideal. A poeta se coloca como noviça, cultuando um senhor que não é do reino deste mundo.

Ama desbragadamente as divindades da ausência, a morte-Ventura, o homem-pai, o homem-Deus, o que não é alcançado. “Eu amo Aquele que caminha/ antes do meu passo”. Uma forma de transgressão que localiza em instâncias sagradas o seu gozo terreno.

A nova fase, a partir de Poemas malditos, gozosos e devotos (1984), desafaz o espaço entre sagrado e profano, entre corpo e pensamento, entre plano terreno e celestial. Ela se perde em espaços abstratos. Buscar Deus é buscar o homem, conquistar o prazer sexual é conquistar a ideia. Mas a procura nada tem de crença religiosa, é uma forma de habitar o Nada, território que não se contrapõe à vida. O diálogo com o homem-Deus, corpo-espírito, se dá pela invocação do inalcançável, que ela chama de Soturno, Sem Nome e Obscuro. Um outro-ausência, metáfora do existir enquanto ficção.

Depois dos caminhos cantantes da juventude, ela recua enquanto corpo erótico que atrai outros corpos, querendo ser linguagem em contato com o sem linguagem, para chegar ao último estágio, o do corpo que, desgastado, agride com seu desejo explícito. A sua fase pornográfica é iniciada com os poemas de Via Vazia (1989), em que o idioma abstrato, elevado, lusitano na sua dicção (ela nunca perdeu esta marca que a une à terra de seus antepassados), dá lugar a um vocabulário escatológico, em que o sexo perde toda a compostura e não quer mais disfarces estéticos. Neste período, começará a ser acusada, segundo ela mesma, de “porca lúbrica”. As coletâneas, já pelo título, revelam a guinada dionisíaca: Alcoólicas (1990), Do desejo, Da noite e Bufólicas (os três de 1992). Este último é composto por fábulas pornográficas, em que a linguagem lírica cede vez ao palavrão, maneira de agredir o leitor convencional que também se sente agredido pelas pulsões sexuais de uma senhora. Em última instância, é uma forma de entronar o corpo como crepúsculo, exultante mesmo às vésperas do Nada.

Toda a poesia de Hilda Hilst trabalha com esta passagem do ser para o não ser. É antes uma busca da morte como superação das ilusões da matéria.

Da poesia
Hilda Hilst
Companhia das Letras
584 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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