Augustus: diário de uma leitura lenta

John Williams não escreveu nenhum livro inferior
John Williams, autor de “Augustus”
30/06/2019

13 de outubro de 2018 [sábado]
Terminei a leitura de O elefante desaparece (Alfaguara, 2018), de Haruki Murakami. O fantástico na obra dele é um recurso ruim. Prende mas também tira a intensidade do livro, dos contos. Vou começar agora Augustus (Rádio Londres, 2017), de John Williams — tradução de Alexandre Barbosa de Sousa.

Será neste ritmo lento que conduzirei minhas leituras.

23 de outubro de 2018 [terça-feira]
Augustus é um romance histórico diferente. O uso de fragmentos de documentos imaginários, algo de que sempre me vali, tem neste relato uma aplicação exemplar. Tudo acontece por meio dos documentos, não há um narrador, mas narradores múltiplos, o que dá à história uma forma lacunar, sem estar centrada em um ponto de vista nem na continuidade de enredo. Um belo exercício de construção.

17 de novembro de 2018 [sábado]
Terminei agora de ler um belo livro fraco. O que faremos com estas leituras irrelevantes? O que elas nos acrescentam? Estou precisando de um livro visceral. Augustus não me prendeu. Leio este romance sem tesão. E as demais leituras que me aguardam não dão água na boca.

2 de dezembro de 2018 [domingo]
Fomos colonizados por outras formas de lazer, o que coloca a literatura em último plano. Tenho lido pouco. Deixei pelo meio Augustus. E mesmo os jornais não me interessam mais. É o fim de um mundo. De meu mundo. Serei um estrangeiro.

19 de dezembro de 2018 [quarta-feira]
Indo para o fim de Augustus. A estrutura fragmentada torna a narrativa confusa, principalmente para quem não é íntimo do tema — a história de Roma. Há belas passagens, mas como um todo o livro se faz indistinto. A linguagem também não convence. Falta historicidade aos textos. É como se vivessem em uma época de excesso de escrita, em que todos escrevem de maneira compulsiva. Esta “escrevinhação” soa falsa. Mas enfrento heroicamente a leitura.

28 de dezembro de 2018 [sexta-feira]
Augustus, que estava me desagradando, entrou em uma fase interessante. Quando aparece Júlia, a filha do Imperador, que se manifesta por um diário, o livro ganha uma dramaticidade maior. Deixa de ser registro histórico para se fazer drama humano. A filha se submete à solidão e a casamentos arranjados para que o pai possa governar o mundo. Revelando Otávio César, futuro Augustus, pela vida familiar (deformada), o livro cresce. Vou entrar em um ritmo intenso de leitura a partir de agora.

29 de dezembro de 2018 [sábado]
Quase concluindo Augustus, romance sobre a renúncia. A família vista a partir das conveniências políticas do Império Romano. O livro se salvou do meio em diante. Espero um final à altura da obra de John Williams.

4 de janeiro de 2019 [sexta-feira]
Terminei agora à tarde a leitura de Augustus. Demorei para entrar no romance, muito fragmentado e com personagens históricas clássicas. Com o ingresso da narrativa em primeira pessoa de Júlia, a filha do Imperador já no exílio, o romance cresceu. O drama da família sacrificada. Da realização pessoal suspensa. Do desejo obstruído. Tudo acontece a Augustus pelo acidente de ter se tornado Imperador. Ele é alertado pela mãe quando resolve assumir este papel. E perderá depois todas as alegrias humanas. Morre sem amigos, dependendo da tirania de Tibério (Nero), seu sucessor e filho adotivo, uma vez que não lhe restaram pessoas melhores. Todos se perderam no caminho.

É um romance sobre a solidão, tal como os outros dois do autor — Stoner e Butcher’s Crossing. A solidão na dimensão heroica. É também um romance sobre o erro, a identidade acidental que nos rouba de nós mesmos.

Na parte final, o relato de Augustus, em longas cartas a Damasco, seu último amigo no mundo (mundo era igual ao Império Romano), é de uma pungência terrível. Ele passa a vida em revista. Ficamos sabendo do fim de Júlia. E aumenta a solidão do Imperador, que reina sobre tantos e não tem mais ao seu redor nenhum interlocutor. Tudo que escreve se destina ao distante Nicolau de Damasco que, saberemos depois, já está morto. Augustus morre na mesma viagem, olhando um mar que não ama, pois é um homem do interior. Estas cartas são o momento alto do romance. No final, encontramos o relato de seu último médico, testemunha de sua morte solitária.

Romance de grande força humana.

John Williams não escreveu nenhum livro inferior.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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