A corrosão dos mitos

Como todo romance que se quer histórico, "Um dia chegarei a Sagres", de Nélida Piñon, está estruturalmente contaminado pelos valores atuais
Nélida Piñon, autora homenageada nesta quarta-feira (8) no Clube de Leitura CCBB
02/01/2021

As principais palavras-chave da cultura portuguesa são: mar, viagem e saudade. Ao redor delas, inscrevem-se outras que formam um universo linguístico particular, concentrado em um país hoje territorialmente pequeno mas linguisticamente dilatado. O nacionalismo português, assim, é transoceânico, não respeita as fronteiras e guarda locais no seu mapa como pontos de contato com a aventura marítima. Um dos centros de mapa do vasto mundo português é a Fortaleza de Sagres, no Algarve. Construída no século 15 pelo Infante D. Henrique, Sagres é um equipamento emblemático da Portugal que colonizou continentes. É a esta metáfora da história lusitana que Nélida Piñon recorre em seu mais recente romance — Um dia chegarei a Sagres. O centro do título, no entanto, não é a aldeia ou o forte, mas o verbo chegar, que atualiza toda a saga das viagens lusitanas.

O romance se passa bem depois do período das navegações, no século 19, quando a história da colonização já estava em processo de questionamento, com a independência do Brasil, que se afirmava como outra identidade, posta entre três mundos — América, África e Europa. A tensão dramática do romance se dará pelo conflito entre o que o jovem Mateus, filho de uma meretriz, criado pelo avô, aprende na escola sobre um país mitificado por seu professor, de nome homônimo a um herói nacional (Vasco da Gama), e sua descoberta da realidade sobre sua pátria. Esta passagem do mito histórico para a experiência pessoal será uma das viagens cifradas pelo romance. Ele terá que chegar a si mesmo.

O primeiro grande deslocamento se dá no sentido da formação de Portugal. Mateus nasce numa aldeia do Norte de Portugal, na divisa do rio Minho, pela altura da cidade galega de Tui. É a fronteira superior, em contato com a região de origem de Nélida (a Galícia). Na tradição lusa, o verdadeiro Portugal é o que está contido entre os rios Minho e Douro, o vale verde, onde o país teve início. Mateus tem que deixar o lar depois da morte do avô e fazer a peregrinação ao outro lado do país, a pé, tal como tantos antes dele fizeram para engrossar as hostes de navegadores. Como não conhece o pai, espelha-se na figura mítica do Infante D. Henrique, e segue em busca dele na condição de herdeiro espiritual. Na aldeia, seu melhor amigo é o jumento Jesus, animal de trabalho na lavoura. Foi em meio a animais que passou a sua infância e juventude, em um contato afetuoso com eles. Na viagem de Lisboa a Sagres, encontra um cachorro que o segue, a quem batiza de Infante. E assim se faz este romance de matriz metafórica, criando paralelos míticos em seres decaídos. Aos poucos, percebemos que Mateus é um anti-herói, símbolo da impossibilidade da saga colonizadora.

Depois da primeira passagem por Lisboa, sempre na extrema pobreza, ele alcança Sagres, vivendo na vila quase como um estrangeiro. O mundo glorioso das navegações é uma paisagem de edificações militares, testemunha de tempos que sobrevivem apenas como memórias hiperbólicas.

Narrado em primeira pessoa masculina, o romance se constrói a partir de retomadas constantes de fatos da infância do narrador e da História, que se misturam. O recurso de uma espécie de estribilho narrativo marca toda a obra, que se afasta dos meios da prosa para se aproximar dos meios da poesia. É em uma língua portuguesa excessivamente literária, que se quer maior do que os fatos, em uma épica contemporânea, sem deixar de cair no caricaturesco, que Nélida explora a identidade portuguesa enquanto idioma. A preferência pelos pronomes em posição de ênclise, o uso desbragado de metáforas e o tom heroico das frases buscam dar ao livro uma monumentalidade para evocar o valor textual da tradição camoniana. Assim, os capítulos se sucedem com um pequeno avanço do conflito, preso a passagens já narradas, que retornam constantemente. Com isso, percebemos que a viagem de ida é uma viagem de volta pela memória, e o que se afasta é também aproximação. Esta técnica transfere para a estrutura do romance a própria história portuguesa, enquanto metonímia do período vencido das grandes navegações.

Como todo romance que se quer histórico, Um dia chegarei a Sagres está estruturalmente contaminado pelos valores atuais. Assim, Mateus não será para sempre um ser orgulhoso da sua nacionalidade, vivendo uma relação conflituosa com o heroísmo pátrio. Exemplifica isso uma tomada de consciência extemporânea, que pertence aos estudos culturais de hoje e não ao século 19: “Tinha ganas de pedir-lhe perdão pelos crimes colonialistas cometidos”. Este deslocamento do vocabulário crítico revela o rito de passagem de Mateus, que deixará de ser estritamente português para ganhar um status universal por meio de uma paixão que se duplica — tanto pela mulher branca paralisada à porta do mundo que é Sagres quanto por um majestoso africano, Akin, que chega à aldeia litorânea para que os continentes se misturem na mistura dos próprios desejos sexuais.

É por meio de sua ambiguidade amorosa que Mateus deixa de ser uma extensão dos mitos históricos e ganha uma identidade de confluência. Se não realiza o encontro bíblico com Leocádia, a donzela protegida pela tia poderosa, descobre-se outro nos jogos amorosos com o Africano. A entrada de Akin na vida de Mateus é que o afasta da trajetória colonialista que ele perseguia, vendo-se erroneamente como um legítimo filho do rei.

Expulso da aldeia por seu amor trágico, que reencena o extermínio de milhares de africanos, Mateus retorna a Lisboa e segue uma vida de marinheiro desenraizado, de órfão da pátria, testando-se em outras latitudes para terminar seus dias tão pobre quanto no início, em um quarto escuro, sob a caridade de uma oriental, Amélia, a quem confidenciará o seu amor proibido como forma de comunhão. Ele já não é um iludido pelas narrativas nacionalistas, mas um ser que representa o homem contemporâneo, integrado a identidades múltiplas, pertencendo pelo afeto também às culturas africana, oriental e americana. Um dia chegarei a Sagres retoma a gramática histórica das navegações não para enaltecer a grandeza da máquina colonizadora, e sim como uma tomada de consciência solitária de seus crimes.

PS. Interrompo aqui (espero que definitivamente) minha atividade como resenhista, iniciada em 1993. Agradeço à equipe do Rascunho e aos leitores.

Um dia chegarei a Sagres
Nélida Piñon
Record
510 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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