O último jogo

O time de moleques que adorava fazer cara de mau e o lateral-direito com a triste missão de descer a botina
01/09/2007

Para os jovens atletas do Esporte Clube Jaó, de Goiânia, 1980 foi um ano marcante. Disputávamos o campeonato estadual, categoria Juvenil, e naquele ano a maior parte dos jogos foi realizada no moderníssimo Serra Dourada, na preliminar das partidas dos times goianos no campeonato brasileiro.

Até então, o máximo de glória que cada um de nós havia alcançado fora ter jogado no Olímpico. Agora, o Olímpico se destinava apenas a jogos da segunda divisão e o Serra Dourada assumia o lugar do velho estádio na fantasia da garotada.

O último jogo do campeonato foi contra o todo-poderoso Goiás, na preliminar de um clássico regional: Goiás e Vila Nova. Não aspirávamos mais ao título. Uma vitória, no entanto, nos garantiria um honroso segundo lugar (o campeonato era por pontos corridos).

Ainda guardo a foto daquele domingo. Impressionante como todo mundo do nosso time saía nas fotos com cara de bravo. Quem visse nossas fotos acharia que se tratava de gente muito séria, disposta a dar o sangue pela vitória, mal sabendo que éramos tão moleques que disputávamos torneio de golzinho na sala de aquecimento antes do jogo, para desespero do nosso preparador físico.

Daquela vez não foi diferente. Apenas nosso centroavante, o Cacau, aparece sorrindo na foto, talvez antevendo as alegrias que teria nos anos seguintes, jogando pelos profissionais do Goiás, do Fluminense e do Corinthians.

Ninguém nos obrigava a fazer cara de mau, mas fazíamos assim mesmo e sem combinar antes. Acho que queríamos imitar time profissional, aqueles jogadores todos compenetrados, encarando a partida como uma batalha de vida ou morte.

Meu pai, que não gostava de futebol mas mesmo assim me dava força, naquela tarde estava no estádio. Antes de começar o jogo olhei para a arquibancada, vendo aquele monte de pontinhos coloridos e tentando adivinhar qual deles seria meu pai. Pouco importava, na verdade, saber onde ele estava, o importante era não fazer feio. Além de tudo, aquele era o meu último jogo. No ano seguinte, estaria morando no Rio de Janeiro, com minhas chuteiras dormindo empoeiradas num canto qualquer do sótão da casa dos meus pais, devidamente aposentadas.

Logo no início, eles marcaram um gol. Sabíamos que o jogo não seria nada fácil mas um gol assim, antes de cinco minutos, é para deixar qualquer um à beira de um ataque de nervos, convenhamos. Aos poucos, porém, nosso time foi se recompondo e o jogo começou a ficar equilibrado. No final do primeiro tempo, empatamos, numa cobrança de falta.

Na volta do vestiário, saindo do túnel, levei um susto. De uma hora para outra o estádio tinha ficado simplesmente lotado! Certamente não acontecera assim, de repente, o mais provável é que eu não tenha reparado que o público fora aumentando aos poucos. Estivera concentrado na partida, claro. Pode ter sido isso, tudo bem, mas a impressão era a de que todo mundo tinha resolvido chegar na mesma hora, só para assustar a gente. Agora sim, pensei, nunca vou saber onde meu pai está.

O segundo tempo foi de arrepiar porque a torcida do Goiás começou a incentivar o time deles e a do Vila Nova, em represália, passou a torcer por nós. Eram nada mais nada menos que as duas maiores torcidas do estado e parecia que estavam todos ali, que nenhum torcedor tinha ficado em casa. Poucas vezes na vida senti um frio na barriga como o daquela volta para o segundo tempo. Se fizesse besteira, não era só do meu pai que iria ter vergonha.

O jogo seguiu disputado e por volta dos 35 minutos aconteceu. Eu jogava de ponta-direita, bem aberto, mas num lance resolvi correr pelo meio, trocando de posição com o Cacau (ensaiávamos essa jogada nos treinos). Alguém lançou a bola em profundidade e lá fui eu. A bola estava mais para o lateral-esquerdo deles, que me acompanhara de perto, e percebi que ele chegaria primeiro.

Então dei uma puxada rápida no braço dele e com o bico da chuteira toquei na bola. Ele ficou para trás, corri com a bola nos pés e fiquei cara a cara com o goleiro. Nessas horas o goleiro cresce enormemente, vira um gigante. Quando o goleiro estava já monstruoso de tão grande, chutei rasteiro, no canto. Gol.

Na hora foi uma festa, claro. A parte ruim veio depois. O lugar do campo em que eu jogava ficava perto da torcida do Goiás que estava na geral (ainda existia geral naquela época). De dentro do campo dava para ouvir tudo o que eles gritavam. O juiz não tinha visto a minha falta mas aquele povo todo ali do lado viu e começou a me xingar de coisas impublicáveis. E um bando deles desandou a gritar para o lateral: pega ele! Pega o cara!

O cara, no caso, era eu. O lateral se aproximou de mim e disse baixinho, numa voz tristíssima: não precisava disso.

Olhei bem para ele. Era franzino, tinha os olhos fundos e a pele meio amarelada. O Goiás costumava trazer uns garotos do interior para morar na concentração do clube, no bairro da Serrinha. Os meninos comiam lá, recebiam tratamento dentário, tinham médico, etc. Quando estavam na idade de assinar contrato, subiam para o profissional ou eram vendidos para algum outro time. Alguns se davam bem, mas a maioria acabava voltando para a cidade de onde viera, com uma mão na frente e outra atrás. Eu tinha ouvido dizer que o lugar era meio precário e a alimentação não era lá essas coisas.

Você mora na Serrinha?, perguntei. O lateral fez que sim. Quando percebi, o jogo estava pegando fogo e nós dois conversando na ponta do campo. A galera da geral continuava gritando, pedindo a minha cabeça, e o lateral na minha sombra. Percebi logo que ele estava com medo. O coitado precisava tomar uma atitude, a torcida exigia uma reação, um companheiro de time fez um gesto para ele me descer a botina, mas havia o problema de eu ser mais forte do que ele, não precisava comer a comida da Serrinha, almoçava na minha casa mesmo e tinha mãe para cozinhar para mim.

E agora, o quê que eu faço?, ele me perguntou, apontando com os olhos os torcedores da geral. Aquela pergunta me pegou em cheio. Tudo estava acontecendo por minha causa, afinal de contas. Mas tinha aprendido que em futebol não tem disso não, futebol é para homem — não vê os profissionais nas fotos, tudo com cara de quem come pimenta de sobremesa? —, se fiz a falta, melhor ainda, valeu a malandragem, e lateral existe é para isso mesmo, para sofrer, está pensando o quê?

Enquanto esses pensamentos todos rondavam minha cabeça, ele me perguntou, à queima-roupa: você deixa eu te dar uma porrada?

Olhei para ele e vi que não estava brincando, o rosto estava sério. Mas de repente ele sorriu. Era um meio sorriso, de canto de lábios, parecia que estava pedindo a um amigo para dar uma volta na sua bicicleta. Definitivamente, aquele lateral não combinava com nenhum que eu conhecera até então.

Tudo bem, respondi. E completei: mas só finge, não bate de verdade não. Ele concordou. Logo depois alguém tocou a bola para mim. Eu fiz que tentava um drible e trombei com o lateral, ele esticou a perna como se fosse me derrubar e dei um salto espetacular, caindo no chão com a mão no joelho e gritando de dor.

Os caras da geral foram ao delírio. E dá-lhe palavrão para cima de mim. Um deles me atirou uma laranja que passou raspando. Logo chegou a maca. Nem contava com aquilo, com a realização daquele desejo antigo: sair de campo de maca. Enquanto me levavam eu realmente me sentia um profissional, se até sair de campo na maca eu saía!

Voltei para o jogo e minutos depois o juiz apitou o final. Dois a um para a gente. Na geral, ninguém entendeu o abraço que o lateral veio me dar depois da partida, como se fôssemos velhos amigos.

Mais tarde meu pai foi se encontrar comigo no vestiário, todo feliz. Chegou até a me chamar de artilheiro. Meu pai nunca soube da verdadeira história, do que realmente aconteceu dentro de campo naquele dia. Quer dizer, agora sabe.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

Rascunho